Ouvido absoluto. Por Angela Barros Leal

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Na última hora, a Cantora ligara três vezes para a recepção do Hotel. Com sua voz inconfundível de bourbon e fumaça pedira, insistira, e por fim implorara, para que dessem fim ao barulho que a incomodava, e que a impedia de conciliar o sono. Eram quase quatro horas de uma madrugada que seria tranquila, não fosse a ansiedade que se estabelecera na recepção, a partir do primeiro telefonema de queixa. A atendente chamara funcionários para vasculharem o Hotel em busca da fonte do ruído. Inútil. O silêncio imperava.

E a Cantora voltava a ligar, insistindo que não conseguia dormir, que estava ainda tão exausta do show, que revirava enredada nos mil fios dos lençóis egípcios, como se sobre espinhos estivesse, que o corpo ardia como se o ar climatizado lhe faltasse, que era preciso, urgente, inadiável, ter o direito à mais profunda quietude, sob a qual, e somente sob a qual, conseguiria descansar.

Por fim, o Gerente foi chamado. Ouviu as explicações do pequeno grupo que se formara no abrigo acolhedor entre o balcão de mármore e a central telefônica, as cabeças inclinadas para frente qual conspiradores em volta de uma fogueira minúscula – uma fogueira exatamente do tamanho do botão vermelho do telefone da recepção, que voltava a piscar na penumbra.

“Não consigo dormir”, lamuriava-se a Cantora com sua voz de palcos e orquestras. “O barulho não para”.

O Gerente era experimentado no atendimento a desejos e caprichos de hóspedes. Confirmou a ausência de ruídos internos, informada pelos presentes, e se dirigiu à porta principal do Hotel, que se abriu automaticamente, deixando entrar o ar fresco da madrugada. Com as mãos nos bolsos, uma ruga funda na testa, parou no patamar dianteiro qual um general inspecionando o campo de batalha.

O Oceano Atlântico à sua frente era uma massa de água escura, quebrando em ondas mansas na areia da praia. Até onde a vista alcançava, para os lados direito e esquerdo da Beira Mar, estendia-se a mais absoluta tranquilidade.

O Gerente voltou ao hall do Hotel e subiu ao andar onde a Cantora se hospedava, a se debater nas mãos torturantes da insônia. Um toque na porta almofadada trouxe a Estrela à sua frente. Os longos cabelos embaraçados não escondiam o tormento. As olheiras profundas não disfarçavam as horas infindáveis em claro. O cigarro fumegava entre os dedos – pois tal fato real se deu no tempo em que vícios assim ainda eram permitidos em ambientes fechados.

“Não consigo dormir”, ela repetiu, com a voz de veludo amassado. “Escute aqui”, pediu ao Gerente.

Foram ambos ao canto esquerdo da enorme suíte presidencial, próximo às cortinas que ladeavam a janela envidraçada, voltada para o mar. O Gerente e a Cantora aproximaram os rostos da superfície escura da vidraça, pulmões sustando a respiração, e ele por fim ouviu o que tanto a perturbava.

Uma batida ritmada, indo e vindo como o toque pausado de um tambor. Um som abafado, quase inaudível, que vinha de longe e reverberava naquele canto da parede, a estremecer, muito, muito de leve, o silêncio do qual dependia o sono da Cantora. Um tremor perceptível apenas à audição treinada, ao ouvido absoluto de quem é capaz de identificar cada nota, em seus graves e agudos, como constatou o Gerente aliviado, compreendendo por fim o que era, e qual era a fonte do desconforto.

“Fique tranquila”, ele assegurou. “Vamos solucionar o problema”.

No andar térreo do Hotel funcionava uma delicatessen 24 horas. O Gerente desceu até lá e solicitou ao balconista toda a última fornada de pão, queijo de coalho fatiado, mortadela cortada fininha, margarina cremosa, um bolo, uma garrafa térmica com café feito na hora, guardanapos, copos e talheres descartáveis.

Saiu da garagem e tomou a direita, na direção do Porto. Depois de explicar ao serviço de vigilância a urgência da missão, alcançou o ponto onde se concentravam os trabalhos noturnos da obra de expansão portuária. Dali podia ouvir, com clareza, o ruído ritmado da máquina pesada, a perfurar o asfalto, a areia e a pedra, o som reverberando nas paredes dos galpões, acompanhando o píer, o contorno da orla, as ondas sonoras sobrevoando a espuma das ondas do mar, até penetrarem, já esmaecidas, na suíte da Cantora.

“Café da manhã para todos”, convocou o Gerente. E os operários foram se chegando, removendo os capacetes, limpando as mãos nos macacões, em pedaços de flanelas, conversando animados, cercando o carro dele para partilhar a inesperada refeição.

Enquanto as nuvens abriam suas cortinas para o Sol, desvendando o espetáculo de mais um dia, lancharam sem pressa sob o olhar satisfeito do Gerente, atento apenas ao silêncio da máquina. A Cantora, dona da mais refinada percepção auditiva, capaz de ouvir sons a quilômetros de distância, naquele exato instante podia suspirar de alívio na cama do Hotel, e usufruir por fim seu merecido repouso.


Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.

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