Final de junho, tempo de voltar para casa. Uma rotina que se repetia, anualmente, desde que, com meus irmãos, vim estudar em Fortaleza, aos nove anos, descolando-me do mundo infantil — o ilustrado universo das pessoas, dos bichos e das paisagens do Cariri. Hoje, ao abrir a janela do apartamento, algo me evoca, de chofre, as lembranças desse tempo: a ventania fria do final de junho.
O fenômeno dessa evocação foi descrito pela neurociência na segunda metade do século XX. Porém, há muito já estava aludido na arte, com seu poder de aprofundar e refinar a observação da experiência humana. Talvez encontremos em Proust o exemplo mais clássico. No seu Em Busca do Tempo Perdido, início do século XX, o escritor francês eterniza o poder da memória sensorial. O simples sabor de uma madeleine mergulhada no chá foi capaz de desdobrar o passado inteiro, como quem abre uma casa antiga e percorre seus cômodos na penumbra da memória.
Essa sensação, mediada pelo hipocampo e pela amígdala cerebral, tem tudo a ver com literatura. Lembrar não é uma simples memória do que foi — é uma recriação. Ao sermos tocados por esses sinais da natureza, o que retorna não é o passado tal qual foi, mas um passado reconstruído pela sensibilidade do presente. Um passado que agora se veste de outros significados, de outras perguntas, de outras subjetividades. “O mistério dos rios é porque eles passam por dentro de nós e só depois deságuam no mar”, escrevinhou nosso Francisco Carvalho.
No dia em que abro a janela do apartamento, estava às voltas com a leitura das ficções de Gabriel García Márquez, enfeixadas em A Caminho de Macondo (Record, 2024), onde, por coincidência ou não, lia-se sobre uma personagem que “…tinha aprendido a resgatar da chuva as vozes perdidas no passado da casa, as vozes mais puras e íntimas”.
Voltando ao vento — aliás, ao meu vento. Falo daquele que sopra dentro da alma, revolvendo folhas, palhas, bagaços de cana, ciscos das fornalhas do engenho — trazendo, nos seus redemoinhos, o cheiro do mel e da tiborna e muitas, muitas lembranças. O mesmo vento que, nas palavras de Virginia Woolf, em Ao Farol, atravessa a casa e os anos, varrendo presenças e ausências, esculpindo o tempo como se esculpe uma escultura invisível.
O vento traz vozes antigas, nomes que já não se dizem. E sussurra memórias e sensações que se imaginava sepultadas.
