Uma América Latina demasiadamente latina; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

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É tempo de retomar o tema das nossas incertas origens latinas — narrativa antes interrompida por exaustão confessada. Iniciei-a aqui, identificado à grei dos filhos que somos de uma brusca transação de força e sedução entre europeus e autóctones. Vicejamos e sobrevivemos em uma relação de dominação entre populações “originárias” e escravizados, trazidos a ferros das costas da África ou apresados por aqui mesmo, com investimentos moderados para caça e domesticação de mão de obra primária.

Franceses, espanhóis, portugueses, belgas, italianos, aventureiros e navegadores, pastores e nautas, preceptores em obra virtuosa de catequese, anunciadores da “civilização”, abriram caminho pelo mar da conquista. Muitos deles desembarcaram aqui, na pele de descobridores de terras à deriva, para estes lados do que haveria de ser, um dia, a América — a América dos espanhóis, portugueses, franceses e ingleses (do Norte, do Centro e do Sul), guardadas as devidas distâncias civilizacionais.

Desembarcaram deste lado atlântico os novos mercadores e extratores, todos eles de vocação colonizadora, piratas ou corsários, a serviço do rei ou dos bens da fé, em missão de conquista ou empreendimento privado para saque nas rotas do comércio — predadores dos mares. Brigaram entre si e contra os locais, nas suas montarias desembarcadas, em nome das superiores razões do Império e da Fé.

Somos produtos dessa mestiçagem de povos, saídos de um melting pot cultural impreciso e mal dosado. Não é de estranhar, portanto, que tenhamos trazido e cultivado, a partir de gerações em idade civilizatória tão díspares, os valores, as crenças e as aspirações que nos guiam até hoje.

A “América Latina”, construção de frágil contextura geopolítica, é fruto e resultado do catolicismo fundamentalista peninsular, que fincou raízes entre nós e moldou-nos à moda do que somos hoje.

Transformamo-nos em um imenso território no qual nos multiplicamos como se habitássemos um viveiro de reprodução, contidos por um certo atraso intelectual, com pendores salvacionistas e uma inclinação visível para o mandonismo, o arbítrio e a força da autoridade. Conservamos esses traços culturais até hoje. São a matriz do retrato sem retoques no qual Sérgio Buarque de Holanda deixou as tintas e os contrastes do homo cordialis brasileiro.

Georges Balandier e Alfred Sauvy situaram a “América Latina” como integrante de uma categoria geopolítica, social e politicamente periférica — o Tiers Monde. “Terceiro-mundistas” contemporizaram essa classificação “ofensiva” com uma designação indulgente e confiante: “países em desenvolvimento”

[George Balandier — “Le Tiers Monde”, Paris, PUF, 1956].

Neste vasto quadrado territorial, ao qual juntamos as transposições improvisadas de uma modernidade mal digerida, emparedamos o nosso passado e escondemos o nosso futuro. Fora alguns lances bem-sucedidos — logo recolhidos ao controle das oligarquias —, sob a batuta de uma elite patrimonial de escassa formação intelectual, somos o que sempre fomos. E quiçá o tempo ainda corra para que possamos consertar o viés persistente do nosso caráter ancestral.

Pusemos, na sala de visitas, o mobiliário conveniente de uma família abastada, dotada de modos civilizados à la française. Porém, a cozinha é a mesma — o lugar a que recolhíamos a entourage e as nossas vergonhas de senhores de pés-descalços.

Cinco séculos transcorridos, demos aos velhos hábitos acumulados os mesmos cuidados descuidados. Adaptamos os princípios, conceitos e insumos de liberdade — inerentes à democracia — às conveniências de governos autoritários. Dominados por um incontrolável animus domini [intenção de ser dono], fabricamos em casa uma democracia para uso interno e, convenientemente, para exibir a aparência composta de bons moços democratas.

Por não termos construído uma democracia bem comportada, não temos povo. Por governo, temos o que constituímos como povo — obra da nossa fantasia. O sistema político é uma contrafação dos preceitos constitucionais básicos inspiradores. Como modelo de organização, não passa de um arranjo legal compartilhado. A organização partidária assemelha-se a uma aglomeração de interesses múltiplos e contraditórios. A construção do voto exibe as cores de uma fantasia: comédia representada por atores improvisados.

A instabilidade institucional — assim como a função matricial de governo — está igualmente presente na instabilidade jurídica, tornada instrumento cego da realização da Justiça. Os conceitos de “soberania”, “representação”, “liberdade” e “democracia” perderam validade e garantia, recolhendo-se às abas de um new constitutionalism de proveta.

A bacharelice e a mídia apropriaram-se das tarefas comezinhas da exegese política e ética, construíram teorias e doutrinas, e as vestiram com um novo tom pink de democracia.

Resistir, quem há de?

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