O grito que antecipou o caos: “Brasil, mostra tua cara” revisitado; Por Luis Sérgio Santos

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Neste artigo, não me escorarei — para insinuar erudição — em nenhum guarda-chuva conceitual importado do hemisfério Norte. Nem Baudrillard, nem Morin, tampouco o “queridinho” de tantos, Foucault; nem mesmo o meu — confesso — “queridinho” Benjamin. Habermas? Nem pensar. Derrida — ame-o ou deixe-o. Adorno, meu amor clandestino. E nem o novo chamego da academia “descolonial”, o sul-coreano Byung-Chul Han que, ironicamente, também habita o Norte.

Minha prosa é sobre a produção intelectual — entre tantas que o Brasil já pariu — de uma peça rara: um filósofo heterodoxo tropical, batizado Agenor, Agenor de Miranda Araújo Neto, mas conhecido pelo vulgo que atravessou gerações: Cazuza.

Cazuza foi uma das vítimas mais implacavelmente atingidas pela AIDS, no auge da epidemia, quando ainda não havia promessa nem fuga medicamentosa. Partiu aos 32 anos, consumido pela enfermidade, em 7 de julho de 1990. Ídolo de pelo menos duas gerações — a minha inclusa —, teve em sua mãe, a filantropa Lucinha Araújo, uma das grandes responsáveis não apenas pelo sucesso de sua carreira breve e fulgurante, mas, sobretudo, pela preservação de sua memória.

Cazuza nos balançou em Bete Balanço — “Pode seguir a tua estrela / O teu brinquedo de star / Fantasiando um segredo / No ponto aonde quer chegar” — primeiro em sua própria voz, depois na de Frejat. E ainda alfinetou: “O teu futuro é duvidoso / Eu vejo grana, eu vejo dor / No paraíso perigoso / Que a palma da tua mão mostrou.” Mas todo esse meu arrodeio — quase um “nariz de cera” — é para chegar ao ponto G.

Cazuza está no ar novamente desde 31 de março de 2025, no remake heterodoxo da novela Vale Tudo, assinado por Manuela Dias para a TV Globo. Sua porta-voz é o timbre original e universal de Gal Costa, que devolve ao país a contundência de Brasil na antológica abertura visual da novela.

É uma abertura que revela o país híbrido, saturado de ambiguidades e — desculpem a cacofonia — desigualdades estruturais, sob a tutela de um Estado assistencialista que, paradoxalmente, preserva o status quo, a concentração de riquezas, com mobilidade social beirando zero. (O assistencialismo é mantenedor ferrenho das desigualdades.)

Mas a abertura não comove ninguém; ela é apenas uma alegórica transição para a trama central, envolvendo uma família complexa — a despeito de, e talvez devido à, sua fortuna financeira. Somam-se a isso os dramas secundários, coadjuvantes, onde a miséria humana também se expressa — a mocinha que vende a casa da família e foge com o dinheiro é apenas um deles.

Sucesso nos anos 1980, Brasil — composta em parceria com Nilo Romero e George Israel e eternizada na voz de Cazuza — é uma canção repleta de metáforas e ironias. Sua atualidade revela um país que estabilizou as desigualdades e naturalizou a corrupção, tal qual nos escândalos da década de 1980, só que agora em escala de atacado.

“Toda essa droga que já vem malhada antes de eu nascer” funciona como metáfora de múltiplos sentidos. Primeiramente, aponta para uma herança maldita, um mundo já deteriorado, um fardo histórico. A expressão se apropria do vocabulário das ruas: a droga malhada, adulterada, cortada — uma cocaína desdobrada e impura. Assim, a “droga” se torna imagem do próprio país: um Brasil viciado em suas distorções e fraudes.

“Brasil! Mostra tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim” — a convocação de Cazuza pedia a relação dos verdadeiros donos do poder, aqueles que de fato mandam no país. Nos anos 1980, o chamado “crime organizado” dificilmente estaria nessa lista; era apenas um esboço, um embrião ainda longe de se tornar força política. Hoje, porém, Cazuza talvez precisasse reescrever seus versos para incluir o Estado paralelo — robusto, articulado e temido — que floresceu à sombra das omissões do Estado oficial.

Aqui, na brutalidade do vale-tudo real, a ficção chega a ser risível diante da realidade.

Luís Sérgio Santos é jornalista, editor e diretor da Omni Editora. Tem pós-graduação na ECA-USP e MBA em Marketing pela FGV-RJ. Vencedor do Prêmio Esso de Jornalismo em 1980, participou do Young Journalists Program nos EUA em 1987 e do workshop Newspaper Design na University of Miami em 1995. É autor de projetos reconhecidos em design gráfico e editorial.

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