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A barca D’Espanha. Por Angela Barros Leal

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Em um domingo no início de outubro do ano de 1950, aportou em Camocim, município da zona Norte do Ceará, uma embarcação aparentemente carregada de mortos.

Não se tratava de um navio fantasma, como o infame Mary Celeste, descoberto a cruzar solitário as águas oceânicas com todos alimentos, objetos e pertences dos passageiros a bordo, os escaleres presos aos devidos lugares, sem vivalma que o conduzisse. O barco chegado a Camocim, estreita e insegura embarcação medindo 12 metros de comprimento por 2 de largura, encontrava-se ocupado por cerca de 40 pessoas, à beira da morte.

A lenta aproximação dele, entrando rumo à segurança do porto, movido pela correnteza da embocadura do rio Coreaú, na fronteira com o Atlântico, encalhando por fim nos bancos de areia formados pelo incontrolável processo de assoreamento, chamara a atenção dos moradores da pequena cidade naquele domingo, após se terem mostrado inúteis as tentativas de contato.

Alguém mais audacioso conseguiu vencer a distância, chegar até lá e subir ao convés. A voz popular descreveria depois o que havia sido encontrado: dezenas de homens, duas mulheres e uma criança, todos em desesperadora condição, olhos embaçados pela luminosidade inclemente do sol, dentes frouxos pela ausência de vitaminas, corpos sem forças pela desnutrição.

Mais pessoas da cidade foram chamadas para trazer à terra os náufragos, e prestar a eles os primeiros – os ou últimos – socorros.

Quem estava lá, e ainda não perdeu esse fato no amplo salão da memória, diz que o encargo da cura foi assumido por famílias locais, levando os navegantes para dentro suas casas, preocupados em atender à sede e à fome deles.

Os hóspedes falavam uma outra língua, que os mais letrados identificaram como sendo espanhol. Em tal idioma, e na segurança das camarinhas em que foram acolhidos, enquanto se familiarizavam com a oportunidade de sobrevivência sussurraram serem ativistas fugitivos do governo ditatorial de Francisco Franco, mandante da Espanha entre as décadas de 1930 e 1970.

Haviam se armado de nada além da coragem para escapar de penas graves, ousando enfrentar o Oceano Atlântico na precária embarcação, em busca de abrigo no Brasil. Se não foi exatamente isso o que disseram, pelo menos é assim que foram entendidos, nos diálogos meio em espanhol, meio em português, meio velados pela voz do vento dominical a varrer as ruas da cidade.

A história alcançou os ouvidos das autoridades da capital. Os jornais registram os fatos: no dia 12 de outubro de 1950, os 42 refugiados chegaram em Fortaleza não mais como náufragos, mas como cidadãos nutridos e dessedentados, passando aos cuidados devidos à entrada de estrangeiros, destinados a permanecer sob vigilância no Quartel da Guarda Cívica de Fortaleza.

Nos interrogatórios, todos os 39 homens, mais uma senhora, uma senhorita e um garoto, conforme registro do jornal fluminense Tribuna da Imprensa, afirmaram serem naturais da ilha de Santa Cruz de Tenerife, pertencente ao arquipélago das Canárias, terras de Espanha, distanciadas de Camocim mais de 4 mil quilômetros.

Haviam se lançado ao mar no dia primeiro de agosto, com destino à Venezuela. Fizeram uma escala em Dacar, na península do Cabo Verde, onde o medo levou ao desembarque de quatro companheiros e do patrão do barco. Daí prosseguiram a viagem, apesar do temor das tempestades caribenhas – que não conseguiram evitar.

Perderam o rumo após o enfrentamento de três terríveis temporais, entrando no domingo anterior, mais mortos do que vivos, pela boca da barra do porto de Camocim.

Buscavam aqui melhor condições de trabalho, explicaram aos delegados, e alguns deles exibiram documentos perfeitamente em ordem, preservados das agressões da natureza. Na Espanha, os salários não compensavam os trabalhos exaustivos com os quais se ocupavam, o que justificava a busca de um futuro na Venezuela.

À pergunta sobre porque não tinham eles embarcado em um navio de curso regular, ao invés de arriscarem suas vidas em mares tão revoltos, devem ter dado de ombros e respondido o óbvio: não dispunham de recursos para tanto.

As autoridades iriam “estudar a situação dos espanhóis”, afirma o jornal, para depois decidir sobre o seu destino. O que se sabe é que nenhum deles permaneceu na pequena cidade praiana, e fico pensando sobre o que teria sido feito da estreita barca d´Espanha, e sobre quem seriam, de verdade, os arribados em Camocim: se fugitivos políticos de uma ditadura sangrenta, conforme o que teria sido cochichado, na penumbra das alcovas, ou se pacatos cidadãos, tão empenhados em conseguir trabalho a ponto de enfrentarem uma aventura quase fatal. Passadas mais sete décadas, quem saberá.

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