“As universidades precisam viver em uma atmosfera de autonomia e de estímulos vigorosos de experimentação, ensaio e renovação. Não é por simples acidente que as universidades se constituem em comunidades de mestres e discípulos.”
— Anísio Teixeira, A Universidade e a Liberdade Humana, RBEP, vol. 2, nº 51, 1953
Desde suas origens mais remotas no Ocidente — em Bolonha, Paris, Cambridge ou Harvard —, a universidade surgiu, organizou-se e conquistou espaço como Sedes Sapientiae, em torno da cátedra, dos mestres e dos seus discípulos.
Na sua gênese, subordinada às confissões de fé e à autoridade da Igreja, a universidade foi, aos poucos, desfazendo-se desse jugo atemporal, à medida que os avanços das ciências e dos saberes ampliavam seus horizontes. Contudo, mesmo libertando-se da tutela religiosa, não se livrou dos controles e da autoridade do Estado.
Se não bastasse, com a universidade napoleônica, consolidou-se o modelo das Grandes Écoles, moldada para atender às necessidades do Estado e aos interesses do mercado. A missão civilizatória deu lugar a uma função instrumental.
Mais recentemente, com a explosão das nacionalidades e o fortalecimento dos poderes estatais, a universidade expôs-se ainda mais às injunções da política, das ideologias e das paixões humanas. Dobrou-se, então, às formas mais severas de totalitarismo. Parecia que, ao se libertar dos domínios da Fé, havia caído na armadilha das infinitas conexões e amarras do Estado. Tudo isso se fez — ironicamente — sob as luzes das ideias iluministas da liberdade e da igualdade.
Por fim, como uma etapa mais aguda dessa trajetória, vieram as disputas identitárias, de gênero e de raça, que, sob a promessa de corrigir os erros do passado, passaram a colocar em xeque os próprios fundamentos da civilização — como se se tratasse de uma reescrita, muitas vezes rasa, do passado.
A autonomia universitária, atributo regenerativo e essencial deste ente civilizacional, foi, ao longo de dois milênios, o ponto crítico de resistência. Resistência contra o governo tentacular do Estado, contra o absolutismo, contra os sistemas totalitários — sejam eles socialistas, fascistas, nazistas — e, hoje, contra as democracias frágeis, vulneráveis às pulsões que ameaçam romper as fundações do Ocidente.
O risco representado tanto pela esquerda quanto pela direita — sob variadas formas de autocracia, fascismo, comunismo, nazismo, democracia social e híbridos suspeitos — manifesta-se, no âmbito universitário, na redução da liberdade de pensar, estudar, produzir conhecimento e compartilhar descobertas com a sociedade. E, sobretudo, na asfixia da capacidade de formular pensamento crítico.
É preciso lembrar que Bolonha, Paris e Cambridge (tanto no Reino Unido quanto nos EUA) nasceram à sombra dos monastérios e de seus scriptoria, mas foi de arrivistas, de alunos e mestres vindos de lugares distantes, que essas universidades encheram suas salas. A internacionalização, essência da universidade — como o próprio nome revela —, está no cerne do desenvolvimento da ciência e do saber que iluminaram a consciência e a inteligência humanas.
O Quartier Latin, junto ao boulevard Saint-Germain-des-Prés, em Paris, conserva ainda hoje a aura de erudição que lhe vem dos tempos em que estudantes de toda a Europa se reuniam ali. Foi nesse ambiente que o Trivium e o Quadrivium operaram transformações profundas na concepção e no próprio conceito de Universidade — com “U” maiúsculo.
Como, então, conceber uma universidade sem estudantes, sem professores, sem pesquisadores estrangeiros? Como, e com que autoridade, reservar ao Estado a prerrogativa de exercer controle sobre as necessidades e demandas da universidade? Sobre a ciência, sobre o saber e, sobretudo, sobre o senso crítico da Alma Mater?
Não se pode ignorar o assalto, ordenado e disciplinado, da esmagadora onda woke e queer às universidades de todo o Ocidente. Legiões bem organizadas, sob a égide de uma revolução cultural, impõem regras, costumes e formas de conduta. Combatem inimigos reais ou imaginários, mas não percebem o quanto reproduzem, na sua essência, os mesmos mecanismos de discriminação, autoritarismo, arbítrio e violência moral que dizem combater.
O tratamento recentemente imposto à Universidade de Harvard — com cortes de verbas, supressão de bolsas, censura de livros e expulsão de estudantes estrangeiros — não produzirá efeito sobre ideias que, paradoxalmente, alimentam-se do próprio autoritarismo das ideologias salvacionistas. Ideologias que se ancoram em impulsos primitivos travestidos de revelação e são abraçadas por iluminados e militantes ignorantes, disseminados pelos campi universitários.
São lembranças que evocam, de forma sombria, as imagens trágicas da Opernplatz, em Berlim, no fatídico Auto de Fé da queima de livros. A história, mais uma vez, ensina — e mais uma vez é ignorada.
O Ministro da Propaganda Joseph Goebbels (no palanque) enaltecendo os estudantes e membros das Sturm Abteilung, Tropas de Choque nazistas, por seus esforços para destruir trabalhos considerados “não-alemães”, durante a noite de queima dos livros na Praça da Opera em Berlim, Alemanha. Dia 10 de maio de 1933.