
Desde a redemocratização de 1985 — com a eleição indireta de Tancredo Neves para Presidente da República e José Sarney para Vice, ambos do PMDB — até as eleições de 2014, vencidas por Dilma Rousseff (PT) contra Aécio Neves (PSDB), o Brasil viveu uma inédita paz social e institucional. Houve sucessivas crises econômicas e políticas, mas nenhuma delas foi capaz de conflagrar pessoas e instituições. O extremismo existente à época limitava-se a excentricidades como as do político conservador e ultranacionalista Enéas Carneiro, dono do célebre bordão “Meu nome é Enéas!”.
Sobretudo a partir de 1994, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), consolidou-se uma salutar disjunção entre dois ideários políticos, que divergiam essencialmente sobre o tamanho e o papel do Estado brasileiro. De um lado, o arco liderado pelo PSDB, defensor de um Estado enxuto e menos intervencionista, alinhado às teorias liberais. De outro, o arco liderado pelo PT, partidário de um Estado maior, promotor de direitos sociais e com presença marcante na economia, ancorado no modelo de Estado social. Por mais de duas décadas, esse duelo ideológico foi travado dentro das regras constitucionais, sem abalar os alicerces da democracia. A convivência entre apoiadores de um e de outro modelo era pacífica — éramos felizes e não sabíamos.
Mas então vieram as eleições de 2018, inflamadas pelo lavajatismo, pelo impeachment de Dilma Rousseff, pela criminalização da política e por uma repulsa difusa ao sistema. Quem melhor soube surfar nesse caldo foi Jair Bolsonaro, veterano deputado do baixo clero, que fez carreira defendendo liberação de armas, tortura e ditadura militar. Uma vez eleito Presidente, Bolsonaro destruiu políticas ambientais e culturais, enfraqueceu universidades públicas, hostilizou minorias, disseminou a negação da ciência — sobretudo durante a pandemia —, atacou o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), insuflou pedidos de intervenção militar e liderou uma tentativa de golpe de Estado. Por isso foi condenado a mais de 27 anos de prisão pelo STF e, agora, exige anistia sob o argumento de que só assim haveria “pacificação” no país.
Ora, vejam: pacificação havia antes do bolsonarismo. Foi Jair Bolsonaro, com sua truculência retórica e espírito golpista, quem incendiou este país. Como aceitar que só teremos paz se perdoarmos o causador da guerra? É como dizer que, para salvar a mesa, é preciso perdoar o cupim — quando, na verdade, é preciso eliminá-lo para proteger a madeira.
Observe-se que Dilma Rousseff sofreu impeachment (2016), Lula da Silva foi preso (2018) e Fernando Haddad perdeu a eleição de 2018. Apesar disso, não houve ameaça concreta de ruptura institucional, tampouco intervenção estrangeira em nossa soberania. O que vivemos não é um “conflito” entre forças equivalentes, mas ataques unilaterais à ordem constitucional promovidos pelo bolsonarismo.
Assim, a tão falada “pacificação” do Brasil só virá quando houver punição efetiva aos golpistas — algo inédito em nossa história — e quando a oposição ao PT se realinhar em torno de lideranças responsáveis, capazes de disputar poder dentro das regras democráticas. Esse espaço já existiu e foi ocupado, com equilíbrio institucional, pelo saudoso PSDB.
