“Nenhum receio de desagradar o magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão”, estabelece o Estatuto da Advocacia. Nunca em vão a lembrança desse verdadeiro princípio para a atuação do defensor, principalmente no dia 11 de agosto.
Em nosso Estado Democrático de Direito, para que se aplique uma pena a alguém pelo cometimento de algum crime, é imprescindível que haja um processo e um julgamento. Nesse cenário, além da participação do juiz e do promotor de justiça, é necessária a atuação de um advogado. Faz parte do jogo. Não seria possível discriminar casos que merecem ou não defesa – tampouco admitir processos em que só atuassem juízes e acusadores. Como garante a Constituição, “o advogado é indispensável à administração da justiça”.
Processos judiciais devem ser vistos como instrumentos de efetivação da justiça – e não como meros obstáculos para a satisfação de um deturpado senso de justiça prenhe de ódio e intolerância. De tempos em tempos, a imprensa volta seus holofotes para um caso que causa indignação e revolta em uma sociedade que se vê reiterada e violentamente açoitada pela criminalidade. Nesse contexto, o advogado vê-se obrigado à “absurda” missão de defender os direitos de seu constituinte. O escritório de advocacia torna-se a última trincheira exercício do direito de defesa, mesmo daqueles investigados por fatos tidos como graves e repugnantes.
Para Marcio Thomaz Bastos, “nesses momentos tormentosos, é saudável revisitar os cânones da nossa profissão. Como ensinava Rui Barbosa, se o réu tiver uma migalha de direito, o advogado tem o dever profissional de buscá-la. Independentemente do seu juízo pessoal ou da opinião publicada, e com abertura e tolerância para quem o consulta. Sobretudo nas causas impopulares, quando o escritório de advocacia é o último recesso da presunção de inocência.”
A advocacia é, certamente, uma das profissões mais incompreendidas na sociedade, principalmente quando se tratam de causas impopulares, isto é, quando a opinião pública realiza um julgamento sumário da situação e condena aqueles acusados de algum malfeito de larga repercussão. Nesse eterno déjà-vu de notícias repulsivas – de crimes de sangue ou do colarinho branco – é que residem a drama e a glória do defensor, “nesse pisar de lama sem salpicar os sapatos”, como disse Laercio Pellegrino.
Tal ambiente é brilhantemente descrito por Antoine Garapon: “O direito começa aí a ser esquecido, na transgressão da regra em nome de uma pretensa moral superior. A justiça passa a ser feita em praça pública, fora da mediação da regra e de um espaço adequado à discussão, quer dizer, sem o auxílio de um profissional sensível e intelectual”. Trata-se, de acordo com o jurista francês, de “alquimia duvidosa entre justiça e mídia”, que “assinala uma profunda desordem da democracia” e “desmonta a própria base da instituição judiciária, abalando a organização ritual do processo”.
O insigne jurista Haroldo Valladão escreveu passagens magistrais em defesa dos advogados, como em discurso pronunciado perante o Instituto dos Advogados Brasileiros, em 1951, ao afirmar:
“Em verdade, nós os advogados, nos confundimos, na defesa do direito violado ou periclitante, com os próprios ideais de Justiça de liberdade e de independência. Lê-se no Sermão da Montanha: ‘Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens’. (Mt 5.13) Assim é a advocacia para a sociedade, assim é a liberdade e a independência para os advogados. Se perdemos a liberdade e a independência, para nada mais prestamos. Será como o sal que derrancou, que perdeu a força, que se corrompeu. Deixamos de ser advogados. Se a advocacia desaparece, a sociedade torna-se inútil e insuportável, campo exclusivo das ditaduras e dos tiranos. Sem o sal da advocacia perecerá a Justiça, decompor-se-á a vida social”.
Para Evandro Lins e Silva, considerado o advogado do século XX, a advocacia é “uma profissão cujo objeto é o próprio homem”, não se reduzindo “a uma simples técnica, mas liga-se também, intimamente a uma ética superior, fora da qual o desempenho profissional perde todo sentido e pode converter-se num instrumento de degradação humana”.
De todo modo, não se pode confundir a pessoa do acusado com a do advogado, como se este fosse cúmplice daquele apenas por não contribuir para o aniquilamento de sua imagem e das suas escassas chances de defesa.
Se um dia, caro leitor que avalia estas linhas, você ou alguém de sua família sentar-se episodicamente no desconfortável banco dos réus, quem o amparará? Certamente precisará de um advogado e quererá o mais preparado e aguerrido, de modo que faça valer o seu direito à liberdade, por mais que as outras pessoas o julguem imerecido.