Aparência x Essência: IA e o Efeito Dunning-Kruger; Por Machidovel Trigueiro Filho

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Vivemos em uma época em que o excesso de informação convive com a escassez de reflexão. Nunca tivemos tantos dados ao alcance de um clique, mas talvez nunca tenhamos pensado tão pouco sobre o que realmente importa. Como já alertava Sócrates, “uma vida sem reflexão não merece ser vivida”. O problema é que, em 2025, a reflexão está em risco de extinção, soterrada pela velocidade das telas e pelo brilho artificial daquilo que parece, mas não é.

Na pandemia de 2020, o mundo experimentou um colapso não apenas sanitário, mas também cognitivo. Naqueles tempos difíceis, ficou evidente o efeito Dunning-Kruger: pessoas com pouco ou nenhum preparo assumiam ares de especialistas, reforçadas pelas bolhas digitais das redes sociais. Escrevi um artigo sobre isso, nesse naquele ano. Cinco anos depois, esse efeito não apenas sobreviveu: foi potencializado pela inteligência artificial. Hoje, qualquer pessoa pode produzir textos bem articulados, imagens convincentes ou mesmo vozes realistas com algumas instruções dadas a um algoritmo. A diferença entre o verdadeiro especialista e o impostor tornou-se mais turva.

Nietzsche dizia que “o homem moderno perdeu o instinto e agora apenas calcula”. Se, naquela época, a crítica era à frieza da razão instrumental, agora a questão se amplia: não apenas calculamos, mas terceirizamos até o ato de pensar. A inteligência artificial oferece respostas rápidas e convincentes, mas rouba, pouco a pouco, a coragem de formular perguntas difíceis. A tentação do aparente.

Vivemos em um mundo onde, infelizmente, ficou evidente que a aparência está se sobrepondo à essência de forma acelerada e silenciosa, potencializado pela IA. La atrás, as redes sociais já haviam transformado a vida em palco; agora, a inteligência artificial sofisticou o espetáculo. A fotografia com filtros tornou-se vídeo com atores inexistentes, discursos políticos podem ser fabricados sem que tenham sido ditos, a emoção pode ser simulada. O risco maior não é sermos enganados pelas máquinas, mas aceitarmos viver em um mundo de superfície, contentando-nos com o brilho do aparente em detrimento da densidade da vida real.

Pascal lembrava que “toda a infelicidade dos homens provém de uma única coisa: não saber ficar em repouso, sozinho em seu quarto”. Esse vazio existencial, que já nos perseguia, hoje encontra uma cortina de fumaça ainda mais espessa: a ilusão tecnológica. Em vez de encarar a si mesmos, muitos preferem afogar-se no fluxo incessante de conteúdos automáticos.

Há um renovado e potencializado Efeito Dunning-Kruger em 2025. Ora, se em 2020 víamos amadores disputando espaço com cientistas na interpretação da pandemia, agora em 2025 assistimos à arrogância digital: pessoas que, munidas de ferramentas de IA, acreditam ter acesso instantâneo à sabedoria que levou gerações a construir. É o triunfo da pressa sobre a paciência, da imitação sobre a criação. O Dunning-Kruger 5.0 é ainda mais insidioso, pois fala com a voz da autoridade e veste a máscara da plausibilidade.

Hannah Arendt advertia que a banalização do mal nasce quando deixamos de pensar. Hoje, podemos dizer que a banalização da ignorância nasce quando deixamos que algoritmos pensem por nós. O verdadeiro perigo não é a máquina substituir o humano, mas o humano abrir mão da própria consciência crítica.

Diante desse cenário, a educação continua sendo a vacina permanente contra a superficialidade. Mas não falamos de uma educação voltada apenas para o mercado de trabalho ou para o acúmulo de diplomas. Trata-se de uma formação capaz de devolver ao ser humano a centralidade da essência: pensamento crítico, ética, criatividade, empatia. Incluo nela inclusive a educação em tempos digitais, com a preparação antecipada para o uso correto da inteligência artificial já na educação infantile, como ja faz a China.

O potencial transformador desta revolução digital que experimentamos deixou mais nítido que a sociedade clama para um novo modelo educacional. Com o tempo mais livre, as famílias tiveram a oportunidade de aprender outros saberes fora do modelo tradicional da escola. O vírus descortinou essa possibilidade.

Nos Estados Unidos está em desenvolvimento com muito sucesso a inserção nos currículos de formação dos alunos o estudo prático das emoções (vivências), da ética (situações), além de questões relacionadas ao autoconhecimento, entre outros importantes valores da vida cotidiana. O intuito seria dar mais sentido e prazer ao estudo escolar. Todo esse conhecimento está disponível na rede, acontece que não nos é apresentado no ensino tradicional do Brasil.

De fato, pouco ou nada disso é ensinado nos colégios. Inevitavelmente, esse modelo deverá experimentar mudanças profundas, sob pena de desestimular a ida à escola para assistir aulas de temas ultrapassados. Cadê a sintonia com as necessidades do mundo prático? Já é real que a inteligência artificial causará uma disrupção e muitas pessoas precisarão de ajuda, de educação orientada. Por que não antecipar isso? Que tal remodelar o ensino no Brasil incluindo nele programas de educação e treinamento focados no desenvolvimento de habilidades voltadas para o conhecimento pessoal e para as inteligências artificial (IA), emocional (IE) e financeira (IF), incluindo nessa última, tópicos como empreendedorismo e ética, além de conhecimentos básicos da era digital, como algumas startups já fazem.

Sobre isso, Albert Einstein lembrava que “a mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu tamanho original”. É essa abertura que a escola precisa cultivar — não para produzir replicadores de conteúdo, mas para formar indivíduos capazes de duvidar, questionar e discernir entre aparência e verdade, dentro de uma nova realidade do mundo digital.

Um recado que daria ao nosso leitor seria que a pandemia nos ensinou que uma sociedade desinformada custa vidas e 2025 nos mostra que uma sociedade seduzida pelo aparente e sem educação adequada custará o próprio futuro. O perigo não está na inteligência artificial em si, mas na ilusão de que ela possa substituir a sabedoria humana e a boa educação por algorítimos. Mas para que isso não aconteça, deve-se remodelar por completo a grade curricular no Brasil, sobretudo do Ensino Fundamental e Médio, como o mundo afora já está fazendo.

O desafio de nosso tempo não é apenas tecnológico; é filosófico e educacional. Entre a arrogância da ignorância e a humildade do conhecimento, entre a aparência que deslumbra e a essência que liberta, está o destino da nossa civilização. A decisão, como sempre, continua sendo profundamente humana. Ainda há tempo!

Prof. Dr. Machidovel Trigueiro Filho, Vice Diretor da Faculdade de Direito da UFC, Coordenador do CRIA – Centro de Referência em Inteligência Artificial da UFC, Pós Doutor na USP/SP, Professor Visitante na FIU/EUA, Professor Pesquisador em Stanford, EUA. Foi eleito o “Empreendedor Digital do Ano no Brasil” pela Associação Brasileira de Startups e a Startup Brasil.

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