Era o porteiro do prédio da Rua Dias da Rocha, era o Seu Osmar.
Migrante nordestino quando na força da juventude, alistou-se peão na construção da ponte Rio-Niterói.
Na portaria, onde eu ia jogar conversa com ele, percebi, depois, que aquela parte de sua vida no Rio estava resguardada, não era o caso trazê-la à superfície.
Moreno a um demão de ser negro, corpo largo, mais para alto, bigodão, irradiava simpatia, naturalmente inserindo uma brincadeira em suas falas, associadas a expressões no rosto e movimento correspondente das mãos: artista; um agrado ao interlocutor, pois não era mesmo o seu papel, o de agradar? Conseguia ser altivo, na medida de sua situação social; a farda de porteiro se lhe ajustava bem.
Seu relance de gravidade, imperceptível ao olhar instrumental, acontecia quando puxava uma tragada de seu eterno companheiro cigarro; ali estava o átimo de segundo onde outras verdades lhe visitavam, o olhar desfocava.
Na minha querida Cidade Maravilhosa, o Rio continua lindo, ele dividiu um pequeno quarto de cortiço com outro nordestino, outro peão da construção da ponte. Ele é convicto de que foi o único que viu esse seu colega de quarto tropeçar em um fio na desordem daquele chão, e ir embora para sempre, o corpo aterrado na carrada de cimento jogada pela máquina grande. Não houve tempo sequer ao grito. E também acha que ninguém o viu naquela manhã abandonando aquele lugar, aquele canteiro de obra, aquele dia a dia de servo, na sombra daquele morto insepulto, juntando seus poucos pertences rumo à rodoviária, entrar no ônibus de volta, agora mais do que antes, o seu Ceará. De um jeito ou de outro, ali viveria.
Seu Cornélio trazia consigo a marca da paralisia infantil, andava puxando uma perna. Estava com ele na portaria daquele prédio da Avenida Barão de Stuart quando passou uma moradora do prédio, mal humorada, mal educada, mal…..ressaltei-lhe as desagradáveis características. Ele respondeu-me: doutor, adoro quando aparece patroa assim, chata. Por que seu Cornélio? Porque o marido sempre é pessoa de bom coração. É mesmo Seu Cornélio? É doutor, só quem aguenta casar com chata assim é pessoa boa. Doutor, são quarenta anos de portaria, no Rio, em São Paulo, em Fortaleza. Calejado.
Seu Manuel não chegou ao patamar de porteiro. Limpava, serviços gerais. Magro, baixo, corpo fino, somava então uns sessenta anos, aparentando mais. Humilde, solícito, concordava logo com tudo e a todos conquistava. Era ele quem ganhava dinheiro a mais lavando os carros. Depois de anos de conversa com os outros empregados, soube-lhe o seu outro lado: boêmio, cantador das rodas, dançarino fino, bebedor livre de culpa, livre de cuidados, espalhou sua semente no ventre de seguidas mulheres. Nosso aniversário era no mesmo 11 de novembro, oportunidade em que ele se antecipava e me trazia alguma lembrança. Seu Manuel, em qual escola mesmo você aprendeu essa arte, essa vida dupla, esse modo de favorecer as circunstâncias?
Hoje, onde estiveram, do outro lado, essas três entidades estarão íntegras: sabem negociar com a existência, sabem ir levando a vida, sabem o essencial. “Eu sou o que sou”. Meus aplausos. Doutores Honoris Causa.
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