Ontem me vi diante de três telas. Sentada para jantar, de repente tomei aguda consciência das três telas luminosas, abertas à minha frente: uma na parede, diante da mesa; outra emparelhada com a xícara de chá; a terceira equilibrada ao lado dos dois pratinhos, um com a fatia de bolo de milho, outro com a tapioca.
Como costuma acontecer nas epifanias, momentos de revelação bíblica, em que os olhares se erguem em direção aos Céus, e se faz ouvir uma portentosa trilha sonora de címbalos e tambores, acompanhada por um coral de vozes angelicais –, conscientizei-me de estar diante de três telas abertas, dispondo, para vê-las, de um par de olhos e de duas mãos, ocupadas entre o chá e a digitação, entre o bolo e o reluzir bidimensional das imagens.
Multitasking, diriam os norte-americanos, que dão nome a tudo. Multitarefas, traduzimos nós, afligidos pela mesma febre epidêmica de atendimento simultâneo à infinidade de estímulos aos quais estamos fadados.
Antes, não muito tempo atrás, quem desejava ler, ou se informar dos acontecidos de mundo a fora, apenas escolhia um lugar adequado na casa e se dedicava a tal objetivo.
(Shhhhhhh!!!! – advertiam as mães, o dedo indicador cruzando verticalmente os lábios: Seu pai está lendo/estudando/se informando –, tudo que elas, muito raramente, tinham a oportunidade de fazer, pois sentar para ler é um luxo. As crianças reduziam o volume de suas vozes, amenizavam a intensidade das brincadeiras, e se instalava nas casas um certo ar de quietude e de reserva.
Haviam sido emitidos os indicativos necessários para todos entenderem que aquele momento – da leitura de um jornal, de uma revista, de um livro, ou da paciente espera pela informação, vinda pelas ondas do rádio, ou, mais tarde, pela televisão –, aquele momento devia ser considerado como merecedor de reverência e de recolhimento.
Nas residências que dispunham do luxo dos eletrodomésticos, calava-se a enceradeira, encarregada de extrair brilho da cera esfregada antes no piso de madeira, embelezado pela elegante resina do sinteco. Silenciava o liquidificador, de onde saíam as bananadas, as abacatadas, as sopas cremosas. Emudecia a batedeira, matriz dos bolos caseiros preparados para a merenda da tarde).
Desloco os olhos do passado para ver o presente, acontecendo nas três telas, alinhadas como planetas, e tento elaborar minha autodefesa.
A tela maior, a da parede, é puramente passiva. Ela emite, eu recebo, sem maiores interações. Resquício fóssil de tempos pretéritos, fonte desnecessária aos nascidos no século XXI. Essa permanece sem volume, ocupando a periferia da minha visão, restrita ao passar dos caracteres onde se destacam assuntos tidos como urgentes pelo poder invisível que os seleciona, e os emite.
Na segunda tela, a do i-Pad, ocupo-me com um dos livros de minha biblioteca imaterial, qualquer um deles pronto para oferecer a luz de suas páginas, a um leve toque de dedos.
A menor delas, a do telefone celular, utilizo para tirar dúvidas ou complementar trechos que leio, para saber o que está se passando mundo a fora, para receber mensagens e, de quando em vez, para atender a uma ligação. É que se fez a mais indispensável, vital pelo que representa em termos de acesso aos fatos e suas consequências, escancarando milhões de janelas.
Tinha percebido, é claro, meu envolvimento mais constante e frequente em duas telas: a dos livros e a da comunicação, muitas vezes predominando essa última, a mais sedutora. Isso porque a tela dos livros não deixa de ser também passiva: alguém me fornece uma informação sem a possibilidade de retorno, o que não acontece no vórtice incorporado pela tela menor, onde descansam os aplicativos, ocultando seus sedutores redemoinhos.
Se duas telas já seriam suficientes para repartir minha atenção, complexo é o problema quando se envolvem as três.
Enquanto tomo o chá, passado o choque do insight, analiso os possíveis resultados de tal somatório. De um lado, reconheço os efeitos cognitivos da concentração fragmentada, o foco incessantemente desviado, correndo de um tutor a outro, feito um cãozinho saudoso. De outro lado, entendo o exercício forçado e prazeroso da atividade mental, acendendo pontos luminosos em lugares pouco visitados no mapa cinzento do cérebro.
Perfuro, na mesma ponta do garfo, um pedaço de tapioca e um tanto de bolo de milho. Quem sabe, às vezes, da experiência com misturas pode, pelo menos, surgir uma crônica. Assim me tranquilizo.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder