
“A verdadeira coragem é ainda hoje como sempre foi: dizer a verdade e enfrentar as consequências.” Hannah Arendt
Belém não é uma abstração, um símbolo patriótico ou um objeto frágil que precise ser protegido de qualquer comentário estrangeiro. É uma cidade real, com gente real — e problemas graves. Como filho de paraense que cresceu passando férias ali, vivi bons momentos na juventude e conheço bem tanto o encanto quanto a deterioração que se aprofundou ao longo dos anos. Talvez por isso eu não me sujeite ao teatro vergonhoso que tomou conta do debate público nos últimos dias.
Uma tolice dita pelo chanceler alemão — e só isso, uma tolice — virou pretexto para uma fila de oportunistas transformar Belém em trincheira política. Uma deputada alemã exige desculpas formais, como se o episódio tivesse relevância diplomática, quando o que há é apenas disputa de narrativa. Uma frase infeliz virou combustível para fingirem uma defesa apaixonada — mas nenhum deles olha para quem vive com esgoto a céu aberto, transporte precário, violência diária e a sensação permanente de invisibilidade. A verdade não cabe nos discursos inflamados: cabe nas ruas que eles ignoram.
Sim, houve uma queda expressiva nos Crimes Violentos Letais Intencionais. No Pará, a redução passa de 57% entre 2018 e 2025, e isso deve ser celebrado. Mas não significa que a violência acabou. Pelo contrário: o número de tiroteios entre quadrilhas cresceu no primeiro semestre de 2025, aumentando o número de feridos e reforçando um clima permanente de tensão. Fortaleza, Salvador, Rio de Janeiro, Natal e tantas outras capitais exibem dados igualmente alarmantes — parte de uma tragédia urbana que não se resolve com bravatas.
Enquanto políticos disputam quem grita mais alto, o transporte público segue sendo um tormento diário. Bairros como Icoaraci dependem de ônibus que chegam quando querem, com horários imprevisíveis e frota envelhecida. Estudos mostram que Belém está “longe da mobilidade sustentável” — e essa é a forma educada de dizer que a cidade falhou no básico. Não há planejamento de corredores exclusivos, não há integração decente, não há projeto consequente. O povo paga tarifa para ter tempo de vida roubado.
No saneamento, a realidade é brutal: apenas 19,3% da população de Belém tem coleta de esgoto (SINISA, 2023). Isso não é uma simples falha administrativa — é um escândalo permanente. Em 2022, foram despejados 41.034 mil m³ de esgotos na natureza sem tratamento. Enquanto os demagogos fazem discursos inflamados, crianças seguem brincando ao lado de valas fétidas e famílias convivem com água imunda correndo diante de suas portas. É nesse contraste que a verdade se revela: muito barulho político, pouca dignidade para quem enfrenta o dia a dia real.
A comparação com Berlim — tão criticada pelos vaidosos de ocasião — não é odiosa por ser injusta; é odiosa porque escancara o quanto Belém foi esquecida. A própria realização da COP 30 expôs esse paradoxo: projeção internacional de um lado, infraestrutura básica colapsada do outro.
O povo de Belém merece mais — muito mais. Amar a cidade é exigir que ela deixe de ser refém de gestores improvisados, de narrativas estrangeiras farsescas e de indignações seletivas. É recusar o teatro e enfrentar a realidade de frente. Quem conhece Belém de perto não se ilude. E, justamente por isso, diz a verdade. Dura, incômoda, necessária.







