Toda vez que desembarco em São Paulo, alguma coisa acontece no meu coração. E não é apenas quando cruzo a Ipiranga com a avenida São João, imortalizadas em Sampa por Caetano Veloso. É mais profundo: é como se o menino do sertão do Ceará — que um dia ouviu a sentença de que, ao completar 18 anos, tiraria os papéis para migrar ao Rio ou a São Paulo — ainda encontrasse, em cada esquina desta cidade, um convite para recomeçar.
São Paulo me fez cruzar caminhos que mudaram minha vida. Foi aqui que recebi a oportunidade, em 1987, para meu primeiro emprego no Instituto Datafolha — por obra generosa do saudoso Gustavo Venturi, professor da USP e referência em pesquisa de opinião, que me selecionou entre 79 candidatos para coordenar a equipe de pesquisadores no Ceará. Essa chance me abriu as portas para a Folha de S.Paulo e, dali, para tantas outras histórias e desafios, trabalhando como jornalista em Fortaleza, Salvador, Rio Branco e São Paulo, construindo um destino.
São Paulo também marcou meu recomeço após dez anos no Banco do Nordeste, quando retornei à Pauliceia Desvairada, em 2013, a convite de um dos ícones do jornalismo brasileiro, Mino Carta, com quem trabalhei ao lado de Manuela Carta e do saudoso Nirlando Beirão.
A cidade foi igualmente generosa na minha jornada de conhecimento. Aqui fiz meu mestrado em Comunicação e Semiótica, na PUC-SP, e aprendi muito frequentando seus museus, cinemas, teatros, ruas, restaurantes e seminários. A escola de jornalismo que pratiquei na Folha foi também uma experiência ilustrada, marca da liderança de Otavio Frias Filho (in memoriam), que, ao revolucionar o jornalismo brasileiro com o Projeto Folha, impactou a vida de todos(as) que participamos daquela aventura.
Não tenho um estudo científico para embasar o que afirmo, mas a vivência de décadas me autoriza a dizer: cearenses e paulistas se dão bem no trabalho porque ambos cultivam uma ética forte, um compromisso com o fazer, o realizar e o entregar. Esse vínculo começa na disposição para enfrentar o novo e se traduz no respeito ao esforço alheio, na busca por resultados e na abertura ao aprendizado contínuo.
Aos 11 anos, migrei para Fortaleza em busca de estudo. Anos depois, vivi em São Paulo por cinco anos e, por mais de 16, trabalhei lado a lado com paulistas — 14 deles na Folha de S.Paulo, um verdadeiro rito de passagem na minha trajetória. São Paulo me deu régua e compasso, generosa com quem chega disposto a contribuir.
Na cidade que tantas vezes me acolheu, e onde tantos conterrâneos fizeram e fazem história, aprendi o valor da entrega silenciosa ao trabalho bem-feito. Em algumas vilas da região da Avenida do Cursino, por exemplo, há mais tamborilenses do que em muitos distritos do nosso município de origem. É bonito ver o cearense que ganha o mundo, mas planta raízes para o retorno. Como aquele conterrâneo que, após cada conquista, compra algo em sua terra natal, tecendo uma ponte de afeto e pertencimento entre os dois mundos.
Há um traço comum entre cearenses e paulistas: o hábito de fazer história sem esperar que ela aconteça sozinha. Ao longo da vida, vi como esses povos se encontram na disposição de seguir adiante, de arriscar um novo começo, de abraçar o trabalho com dedicação. Foi assim na redação da Folha, nas viagens como correspondente no Acre — uma espécie de sucursal do Ceará — ou mesmo nas longas horas no trânsito da 23 de Maio após um voo em Congonhas. É o encontro de mundos que se reconhecem no que importa: a ética do trabalho, a força da vontade e o respeito às oportunidades.
Hoje, ao refletir sobre esse vínculo sob o frio paulistano, o que me vem é uma palavra que o tempo desgasta, mas o coração renova: gratidão. Gratidão a São Paulo, que me deu régua e compasso. Gratidão ao Ceará, que me ensinou a sonhar e partir, tornando-me um cidadão do mundo, um estrangeiro. Gratidão pela chance de viver a ponte que une esses dois lugares, onde o trabalho não é apenas dever, mas modo de ser no mundo.
Que continuemos assim: cearenses e paulistas, juntos, com régua, compasso e uma ética que transforma o trabalho em caminho.
