
Jogador de xadrez antes apaixonado do que preparado, transferi o estudo da técnica a fase outra da vida, quando tudo cabe, e sabemos de experiência vivida o resultado vazio desses adiamentos genéricos, migrando do futuro simples ao futuro do pretérito.
O que aconteceu e o que, acreditem meus caros, eu acreditei, seria plausível de haver acontecido.
Essa distância entre os futuros afigura-se, na variante prosaica, mero ajuste, quase nada, na retrospectiva.
Ou outra variante: a distância entre o céu e a terra, quando não se cogitava de quão intransponível vagava aquele outro cenário.
Ou ainda outra variante: a que deveria separar o que inseparável é: o departamento da infância do departamento da idade onde nos atribuem e nos cobram maturidade, merecendo no caso a paciente aposta na Psicanálise.
Entrementes, sem apuro técnico mesmo, a paixão pelo jogo lá estava, sol aceso, vigente, alheia a tudo mais. A lei do desejo.
A técnica, em todo seu esplendor, em todo seu refinamento, musa soberana, a exigir um tempo e uma energia que, através do cálculo de então, subtrairia de outras expressões da vida, essas que, desde sempre, impunham-se; estrada de antemão a ser cumprida; imposição, ainda que não escrita no corpo, não sendo, pois, instinto, mobiliza vetores de imposição quase ontológicos, difusamente arraigada no estatuto comum da via obrigatória a se buscar a subsistência e a respeitabilidade de classe.
Vivente do Ceará, onde a lida, heróica lida das gerações anteriores, deixou marcas, deixou sulcos, fixando a regra geral da subsistência e ipso facto do não-aprofundamento na dimensão teórica, cheguei ao ponto, em face dessa compreensão do torrão natal, da resignação. Sim, resignação. E a resignação guarda lá sua parcela de sabedoria.
Aceitei, assim, minha identidade de jogador de xadrez legitimamente classificada de capivara, que personifica, em nosso jargão de clube, aquele jogador que aos olhos dos demais engessou-se no molde da categoria média, para todo o sempre.
Para além do princípio do prazer, o mágico prazer de jogar, batia-me por mais: tentei do jogo deduzir princípios de realidade.
Então vamos ao princípio da realidade aplicado à prática do jogo de xadrez.
Antes de tudo: o jogo reflete nossa personalidade, obviedade merecedora de registro, até mesmo porque, especificamente no caso do xadrez, essa verdade, por vezes incômoda, constitui espelho à frente, transparente e constante.
Outro ponto: a repetição dos erros, erros que aparecem sempre, ainda que em gradações, nas mesmas circunstâncias, cristalizados. Mas a partir desse exato momento toma-se decisão de resoluto empenho pessoal: não vou mais cometer esse erro. Vai sim, meu querido, você por acaso combinou com os deuses?
Do jogo de xadrez aprendi o contraditório, cujo nome me veio bem depois, nos bancos da Faculdade de Direito: para cada jogada das brancas, uma jogada das pretas. Igualdade. Paridade de armas.
Meus caros leitores, o núcleo do artigo é: concentração. A concentração, que requer desligar-se das coisas externas. A concentração que evita erros. A concentração que nega o trivial espetáculo, que sabe esperar. A concentração que aprofunda o conhecimento da posição. A concentração que extrai o melhor de nós. É o que mais quero do jogo de xadrez: aprender a concentrar-me. A concentração nos puxando para cima.
Evidentemente há um limite máximo aos frutos da concentração: o preparo de cada um.
Havemos então de buscar saltos de qualidade, saltos de dimensão. E permitam-me um exemplo: fui desde o ginásio dos tempos de Colégio Militar apaixonado pela beleza singela da geometria euclidiana, o ponto, a reta, o espaço. O quinto postulado, das paralelas, hoje questionado. Somente bem depois chegou-me a geometria hiperbólica, exigindo-me salto inédito, inicialmente de compreensão, de alargar radicalmente a visão, de alterar e acomodar antigas verdades; depois, de conciliar as duas geometrias.
Esse salto é o que procuro incessantemente na minha área de estudo, a área jurídica, a compreensão do Direito.
Vale o custo do auto-aprimoramento, da harmonia fina, ou vamos viver mais à toa, vida ligeira, dado que em todos os casos o arbítrio, afinal, é quem mostra as cartas? Depende de cada um. Depende profundamente de cada um.
“Xeque tu dizes à vida
e julgas, homem, ser forte.
Mas no final da partida
xeque-mate diz a morte”.
Ok, meu caro poeta, o final comum, aparentemente, à primeira vista. Porque a natureza do final revela-se no que antes houve. O que vale não é o final do jogo mas sim o jogo jogado. O jogo é o nosso destino, é o nosso mistério, é a nossa realização. É o inverso: o final assegura a beleza anterior. “A thing of beauty is a joy forevery”. Um raio de beleza é uma alegria eterna.
*Linhas inspiradas na convivência inefável com Nabor Bulhões.
**Augustino Chaves, advogado, foi Bicampeão Juvenil Cearense de Xadrez, 1979-1980; Terceiro lugar no Campeonato Brasileiro Universitário de Xadrez, 1983, Florianópolis, representando a UFC.







