Crises, fintechs e cashless society. Por Igor Lucena

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Articulista do Focus, Igor Macedo de Lucena é economista e empresário. Professor do curso de Ciências Econômicas da UniFanor Wyden; Fellow Associate of the Chatham House – the Royal Institute of International Affairs  e Membre Associé du IFRI – Institut Français des Relations Internationales.

Nos últimos anos acompanhamos em basicamente todas as sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento o nascimento das Fintechs, empresas startups que operam em uma nova faixa do mercado financeiro, basicamente fornecendo produtos e serviços financeiros de forma digital e escalável. Dentro deste novo universo, no mundo ora em crescimento, com baixas taxas de juros e em um momento de previsibilidade e estabilidade global, essas empresas se expandiram em todo o planeta, com destaque para a N26, o Nubank, a Coinbase, a Chime e várias outras.

Dentre as diversas promessas que essas empresas fizeram a seus consumidores, uma  das principais foi que seriam produtos financeiros acessíveis, com pouca burocracia, forte inclusão dos consumidores no mercado financeiro e com a drástica redução do dinheiro em espécie. Após quatro anos do início da revolução das Fintechs, as promessas não foram totalmente realizadas e vamos entender o porquê disso.

Em primeiro lugar, o setor financeiro exige um acompanhamento de backoffice bastante robusto, tanto na abertura de contas quanto no acompanhamento de propostas e alteração de limites. Neste caso, o que vemos é que uma Fintech no Brasil é a campeã de reclamações no Banco Central, ultrapassando os bancos tradicionais. Apesar de as fintechs efetivamente terem aumentado e muito a inserção de pessoas no setor financeiro, utilizando contas correntes e cartão de crédito, isso não significa que essas pessoas estão efetivamente ‘bancarizadas’, pois ainda se concentram nos bancos tradicionais as carteiras de crédito como financiamento imobiliário e de automóveis.

Durante o período de baixas taxas de juros no mundo, fazia bastante sentido alguns investidores alocarem bilhões de dólares nas fintechs ao redor do planeta, ajudando-as a aumentar sua carteira de clientes e capilaridade, apesar de um lucro nulo ou muito baixo. Agora a situação se altera, pois, com o aumento dos juros de maneira coletiva pelos Bancos Centrais, torna-se essencial para a sobrevivência das empresas startups que possam ser apresentados os lucros recorrentes, caso contrário a “fé” do mercado nessas empresas ficará abalada. Não é à toa que o Nubank já perdeu cerca de 40% do seu valor de mercado após a abertura do IPO. Uma das principais pressões é o custo de oportunidade para alocar recursos nessas ações quando temos juros básicos cada vez maiores, incluindo dois dígitos em algumas nações tal como ocorre no Brasil.

Um segundo ponto que opera contra as fintechs é a suposição de que em todos os locais existe uma rede de infraestrutura de internet e telecomunicações que pode tornar fácil realizar todas as operações pela internet, o que não é uma realidade principalmente em vários locais como nos rincões do Brasil. A confiança também é outro importante fator, pois muitos usuários de fintechs também continuam usuários de bancos tradicionais, pois a confiança no sistema financeiro não é algo que surge do dia para a noite.

No presente contexto, as promessas das fintechs ainda não são totalmente críveis, e a realidade se mostra e impõe atenção. Outro importante aspecto a se levar em consideração é a ideia de que elas nos transformariam em uma sociedade sem papel moeda, algo que é inversamente proporcional por dois motivos: o primeiro se relaciona com a política monetária; o segundo, com as crises econômicas. Em primeiro lugar a “Fintech Teory” parece não exprimir que a política monetária dos Bancos Centrais afeta diretamente sua capacidade de expandir crédito e operar dentro da economia real. Ações como “Quantitative Easing” na compra de títulos privados e apoios governamentais como o Pronampe ou o Auxílio Emergencial alteram fundamentalmente os preços relativos na economia e, com a volta da inflação, qualquer taxa cobrada por operações financeiras se torna muito cara, abrindo espaço para o velho “desconto em dinheiro”. Outro ponto importante é que o capitalismo em si não é estável, e as crises econômicas são aspectos inerentes do capitalismo como em 1929, em 2007 e mais recentemente em 2020. Quando ocorre uma crise, a confiança em instituições financeiras é abalada pelas incertezas, e a necessidade de dinheiro físico aumenta, seja para barganhar no comércio seja por segurança, mas é algo que se confirma em números.

Quando analisamos os dados do Bank of International Settlements – BIS, o Banco Central dos Bancos Centrais, foi constatado que a quantidade de cédulas em circulação em poder do público aumentou consideravelmente de 2019 para 2020 para as principais economias do planeta. A Rússia aumentou de 10 para 13 trilhões de Rublos; o Canadá, de 99 para 113 bilhões de dólares; a Suíça, de 87 para 92 bilhões de Francos; o Japão, de 117 para 132 trilhões de Ienes; a China, de 8,2 para 8,9 trilhões de Iuans; os Estados Unidos, de 1,8 para 2 trilhões de Dólares; a Zona do Euro, de 1,3 para 1,5 trilhões de Euros e o Brasil, de 280 para 370 bilhões de Reais. Portanto, a ideia de que estamos convergindo para uma “Cashless Society – Sociedade sem dinheiro” não se verifica nos dados reais dos Bancos Centrais. O que mostra é que quanto mais fintechs e produtos digitais existem, mais pessoas conseguem de fato se integrar ao sistema financeiro internacional, e isso aumenta a demanda por papel-moeda, seja para transações, para guardar os valores ou por segurança em momentos de crise.

Mais um outro fator que também deve atrasar a ideia de uma sociedade sem dinheiro é a Geopolítica. Todo dia estamos assistindo a novas disputas internacionais, principalmente no ciberespaço entre as nações, e uma das principais armas utilizadas nessas disputas são os ataques digitais, que podem parar bancos, portos, órgãos do governo e até hospitais, entre outros. A possibilidade de não podermos acessar nossos recursos financeiros por cerca de horas ou dias, digamos, seria desesperador em uma sociedade onde não existisse dinheiro físico. Se ocorresse um ataque direcionado a uma cidade como São Paulo, as consequências seriam devastadoras, lembrando que ataques em redes de internet em uma cashless society também parariam todo o sistema financeiro, algo que seria um risco à segurança nacional de qualquer nação.

Ainda neste contexto é coerente lembrar que as fintechs são importantes, são agentes que mudaram de fato o sistema financeiro, que conseguiram alcançar pessoas que nunca tiveram contas bancárias e que modificaram a relação banco-cliente. Contudo, essas empresas não são imunes a críticas por possuírem diversas falhas. Acredito que esse setor deve se consolidar para algumas dezenas de players com capacidades de crescer e de efetivamente lucrar, entretanto a maior falha das fintechs é não levarem em consideração aspectos básicos da economia, as diferenças regionais e principalmente os aspectos culturais que são básicos para a relação das pessoas com suas finanças.

 

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