Cultura norte-americana para estrangeiros, a crônica de Angela Barros Leal

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Um casal
era
da Guiné. Uma moça jovem vinha do Chile. Outra, com um revelador ponto vermelho entre as sobrancelhas, era da Índia. Havia um estudante de Taiwan, uma senhora risonha da Polônia; eu, do Brasil, entre um número flutuante de procedentes de outros países participando do curso de Cultura Norte-americana para Estrangeiros, em uma sala da imensa biblioteca pública de Minneapolis.

Como acontece em muitas cidades afetadas pelas nevascas nos meses de frio intenso, as bibliotecas públicas são pontos informais de acolhimento para osdesabrigados que buscam o básico – água, banheiros e calor – sem as restrições dos abrigos. Da mesma forma, as bibliotecas são pontos de encontro para quem procura cursos rápidos de assuntos ligados à história, à literatura, a línguas, à arte e cultura.

Da minha parte, ilhada que estava no décimo quarto andar de um prédio que tinha os dez primeiros pisos ocupados por garagem, no miolo do inóspito downtownde Minneapolis, submetida aos rigores e limitações dos curtos dias invernais, a possibilidade de estabelecer contato humano e de acumular novas informações era tão vital quanto o aquecimento.

Ao nosso grupo uniu-se um jovem norte-americano. Para justificar sua presença disse haver stumbled – esbarrado, tropeçado – com a turma, qual fôssemos um objeto físico e concreto, e que se interessara em participar para aperfeiçoar seu conhecimento. A professora, uma voluntária, aceitou a presença dele a contragosto. O atendimento aos nativos fugia ao foco do grupo.

O rapaz chamava-se John. Usava como uniforme um par de tênis, um casaco de moletom branco, com capuz, calças do mesmo moletom, despencadas pelos quadris, as mãos enfiadas em bolsos profundos. Caberia um arsenalnaqueles bolsos, foi o que pensei de imediato.

E era um tanto agressivo, o rapaz. Não ergueu a voz, mas se indispôs um pouco com cada um. A indiana, em resposta às provocações, fez cara de estátua. Os ganenses ensurdeceram. A polonesa olhou para o outro lado, cansada de batalhas. A mim, ele dedicava passos desajeitados de capoeira que eu respondia com um sorriso sem graça.

Mas estávamos ali para aprender, e não para criar intrigas internacionais. O rapaz acalmou-se aos poucos, e nas aulas seguintes fomos sabendo mais sobre ele. Dizia-se desempregado. Gostava de escrever. Assistia filmes de ficção científica. Nascido e criado nos Estados Unidos. Tinha sido dado para adoção quando bebê.

Ele também vislumbrou algo dos costumes dos locais de onde viemos. Pequenas coisas, curiosidades: que as senegalesas levam no mínimo três horas para entrançar os cabelos, da raiz às pontas, mantendo por duas semanas a bela cascata escura caindo sobre os ombros; que os taiwaneses não costumam dar gorjeta, e se você deixar uma nota ou moeda sobre a mesa pode acreditar que o garçom virá correndo para devolver o dinheiro; que o nome Guiné está presente em três países africano: Guiné Bissau, Guiné Equatorial e na própria Guiné.

Nos encontrávamos quase todos os dias da semana, por duas horas, para ouvir, debater, esclarecer dúvidas. Falávamos de filmes, de livros, e do que estranhávamos na América. Vocês não comem os miúdos da galinha, observava uma senhora chinesa. O terreno aqui é plano demais, queixava-se o senhor do Tibete.

Penso que entendíamos bem o conteúdo. Porém sei que nossa pronúncia se assemelhava à de crianças pequenas, torturando a gramática inglesa. O rapaz empurrava o capuz para as costas e ria de nosso esforço, como um filho zombando dos pais, as mãos nos bolsos, pernas estiradas por debaixo da mesa, corrigindo o que tínhamos errado, qual fosse ele o professor. Aprendíamos cultura entre lições de humildade.

Meses depois encontrei uma vizinha, outra voluntária da biblioteca, que me perguntou sobre John. Um tanto orgulhosa, contei o que sabia: o comportamento agressivo inicial, e como ele, aos poucos, incorporar-se-ão grupo. Ele está proibido de entrar na biblioteca, ela informou. E se você o avistar, enfatizou, chame a Polícia.

Aquele rapaz que se identificara com os expatriados, que compartilhara nossas celebrações e que eu, amante de finais felizes, acreditava ter estabelecido conosco o vínculo de uma família tolerante, embora inusitada, carregava nos bolsos fundos pacotes de sonhos em pó, dos mais danosos, comerciados entre uma estante e outra.

De suspeito a inocente, e de inocente a suspeito de novo. A primeira opinião não se mostrou sólida, menos ainda a segunda. Se não é fácil interpretar o comportamento de um indivíduo, imagine-se entender a cultura de países. E aceitei mais essa lição do infindo curso que fazemostodos os dias, sobre as tantas maneiras de ser da espécie humana.

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