“Quando pensamos em um livro, não devemos perguntar o que é que ele diz, mas sim o que é que significa”, Umberto Eco, “Número Zero”.
Minha caverna. Meus espólios sem destinação. Amigos que ainda guardavam livros e coisas afins em casa estão a desfazer-se deles por recomendação médica ou por prudência bem avisada.
Livros são criatórios de fungos e ácaros e provocadores de fibrose, garantem os especialistas pelo que não me ocorrem dúvidas…
Outros, menos ligados a esta perigosa herança de Gutenberg, dizem que ler faz mal aos olhos. Ou “dá azia”, no entender de um político brasileiro. “Menas verdade”, diria Antoribio Flores, jardineiro aqui de casa…
A leitura, exercício e a prática continua a que o livro induz pode resultar em condenação, embargo de consciência ou cadeia, em determinadas circunstâncias.
De fato, reconhecem as criaturas de bom senso: os livros trazem o que de pior persegue a humanidade desde as Tábuas de Moisés. As ideias.
O pensamento aprisionado em códices e incunábulos, versão do livro impresso em páginas e “infolios”, é uma invenção que Tutilives (o diabrete da escrita impressa) consolidou no calor das labaredas do Inferno.
[Em meu livro CONVERSA DE LIVRARIA, conto a história dessa Criatura, o gênio que habita o papel impresso, alimentado pelo papiro e pela tinta, para induzir autores e revisores ao erro e perpetrar assim os “proofreading erro”.]
Melhor, portanto, não ter livros, deles não nos apropriarmos nem criarmos ligações perigosas com os seus autores. Tampouco alimentarmos lealdades ao que diz quem o escreve.
Melhor, pois, não os ler.
Os livros que Proust guardava em seu quarto, à revelia de uma cunhada pouco afeita às letras, foram jogados em uma “fogueira das vaidades”, que a impiedosa senhora, fez arder. Não fosse um antiquário amigo de Marcel, o fogo teria lambido toda a sua memória. Não fora o seu zelo, a cunhada teria queimado os travesseiros de dormir e a cama, na qual Proust tinha por hábito usar cadernos de capa dura, deitado como Michellangelo, braços erguidos a “escrever” os seus afrescos nas pautas do seu “cahier”.
À falta de papel Jesus escreveu na areia , a crer no que está no Evangelho de João.
Por aqueles tempos até os primeiros registros contábeis dos fenícios e dos mercadores da Mesopotâmia, tudo era memorizado, até mesmo as Escrituras, o Alcorão e o Torah. A escrita era considerada pela gente culta como o túmulo das ideias, era o caminho do esquecimento.

Candido Portinari
óleo sobre tela, c.i.e.
55,00 cm x 46,00 cm
Anchieta, no seu estoico apostolado brasileiro, inspirou-se em Jesus e deitou sobre a areia da praia os versos que as espumas das ondas apagaram sem os lançarem ao esquecimento. A oralidade foi sempre um imperativo da catequese e do convencimento.
Sou um remanescente dessa cultura gutenberguiana, recalcitrante escriba e leitor insubmisso a novidades recentes. O que leio no monitor do meu iMac, cúmplice de tantas aventuras verbais, se desperta algum interesse para reflexão, verto o texto para o papel, em impressão cuidadosa, como fazia o mestre-tipógrafo em Mainz…
Para mim, longe estou de pretender fazer escola, à falta do papel, apenas com o brilho da tela, não demonstro respeito pelo que leio, muito menos pelo que me proponho escrever.
Como outrora, os frequentadores do Jardim de Academus eram levados a grafar as suas narrativas de escolha, para não cairem no esquecimento os textos da sua grade eletrônica deixo-me persuadir que os estou protegendo do desaparecimento a que estão condenadas as melhores coisas pensadas — desde que não estejam guardadas na escrita.
