
Sexta feira, meio dia, 7 graus de temperatura. O sino da Catedral de Santiago de Compostela avisara o início da missa. A funcionária no imenso portão da entrada apressava-se no exercício da tarefa de apartar o joio do trigo: à esquerda, os interessados em registrar suas selfies – que voltassem a outra hora, menos sacra; à direita, os cristãos na missão de louvar a Deus. Acompanhei o rebanho da segunda categoria, embora não me coubesse tal honra.
O turíbulo foi o primeiro espanto: um gigantesco suporte de prata, pendendo do teto da Catedral, sustentado por cordas da espessura de um braço. Dizem que, repleto de incenso, o objeto sagrado chega a pesar 50 quilos – mas isso não sei ao certo.
O que sei com certeza é do segundo espanto: as três naves da igreja, formando uma cruz em T, tendo na parte superior o próprio altar, recoberto de ouro e prata; as três naves, dispostas em fileiras duplas de bancos de madeira, ao longo de toda a extensão do espaço daquele monumento à fé, construído no ano mil; as três naves inteiramente ocupadas por fiéis, cinco deles em cada banco, onde aguardavam o início da celebração.
Dos quatro cantos do mundo tínhamos vindo, vencendo estradas e quilômetros. Muitos seguravam ainda os cajados que os auxiliaram nos caminhos, e ao ajoelhar deixavam ver as solas gastas dos calçados, ou partes dos calos e das bolhas expostas no solado dos pés. As marcas do Caminho.
Eu estava entre os muitos que haviam lá chegado de ônibus, de carro, de trem. Não dera um passo sequer fora de pistas asfaltadas, ou de ruas calçamentadas. Não me cabia o mesmo direito de rezar ao lado de um único peregrino, de deixar a fímbria do meu casaco tocar o chão por eles pisado. Mas baixei a cabeça e rezei, como nunca havia rezado em toda a minha vida.
Mais cedo, eu passara pela cripta onde consta que repousam os restos mortais de São Tiago Maior, irmão de João Evangelista, dois dos apóstolos que repartiram a última ceia com Jesus. Mais cedo, eu cruzara por detrás do altar onde impera a imagem de São Tiago, e o abraçara pelas costas, encostando meu rosto em seus ombros encobertos por um frio manto de prata, coragem impulsionada pelo gesto mudo do zeloso cuidador
O meu impulso de religiosidade, quase como se eu estivesse a caminho de Damasco, devia vir da imponência do templo, do cheiro dos séculos, de uma sombra de Inquisição contida no espaço emparedado, criando em meu coração ateu o desejo de me por de joelhos e rezar.
Sem pressa, fui trazendo à lembrança, um por um, os nomes na minha lista de parentescos e de amizades. Rezei de olhos fechados com intensidade e fervor – essa palavra que remete a fervura, a uma elevação de temperatura -, apertando os olhos até não conseguir mais represar as lágrimas. Rezei como se os bilhões de ocupantes do Planeta dependessem da minha oração para sobreviver – ou, se não eles, pelo menos os que residem por perto das câmaras e vasos e veias e entroncamentos do meu descrente coração.
Rezei pela rápida consolidação dos ossinhos do pé esquerdo da Luisa, para que possa voltar logo ao seu trabalho. Rezei pela saúde do Sr. Teodorico, a quem não conheço, mas sobre quem sei um pouco, a partir do que sua filha Vivian me contou. Rezei pelo Franco, que sonha em um dia fazer a pé o Caminho de Santiago, para que de fato o consiga. Rezei pelo Fonseca, que tem praças em Espanha com seu nome de família, para que nunca falte a ele a criatividade que o mantém. Rezei pelo Roberto, para que expulse da boca seus males, e pelo impulsivo Manoel. Rezei pelo Fábio e por Juliany, pela continuidade de nossas curtas conversas semanais. Rezei pelo Sr. Macedo, que nem precisa de tanta reza assim, pois vem traçando há décadas, à sua maneira, seus caminhos de santidade. Rezei pelo Maycon, a quem Deus deu o dom de entender a linguagem das máquinas. Rezei pela saúde da Ruth e pela tranquilidade de sua alma, e pelo Raimundo, que ergueu uma igreja na beira do mar. Rezei pela Ana, pela Edna, pela Elga, pela Erbene, pela Cléa, amigas que andei ganhando e perdendo pelo meio do mundo. Rezei pelo Stênio e seus ascendentes, pela integridade do Paulo, rezei pelo Flávio e pelo João, entre o trigo e o verde, e rezei pelo Dr. Paulo, aquele de palavras sempre em riste. Rezei por amigos antigos, e pelos novos em folha. Rezei pela querida Mary e sua Auxiliadora, e especialmente rezei pelos meus irmãos de sangue, vencendo sem dramas as indesejadas aglomerações de células na cabeça, no seio, na tireoide. Rezei egoisticamente pela minha pequena família, por sermos quem somos e ainda assim nos querermos como nos queremos. Na hora do Ofertório, rezei para que o Santo miraculoso, decapitado em Jerusalém, que teve seu corpo transportado por terras e mares desde o Oriente até o Norte da Espanha, nos desse a mão ao longo do caminho da vida, esse que nos conduz a um único fim. Rezei na hora da Comunhão pela remissão dos nossos pecados, e de joelhos não esqueci também de rezar por você, e por mim.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.







