“… em todo o mundo fez-se moda dizer que a democracia está sob constante ameaça. Quase não passa um dia sem que, de acordo com a imprensa, algum fato ameaça à democracia ou mesmo marque o seu fim”, Eduardo Levy, in apresentação de “Tecnicas de Golpe de Estado”, de Curzio Malaparte, Editora Avis Rara, 2022.
O zelo pela democracia e uma certa persistência em sua defesa puseram em evidência a suspeita de que os que mais se manifestam em sua defesa são, em situações comuns, n os que maiores riscos representam para a sua preservação.
Os sinais de fragilidade exibidos pela democracia brasileira revelariam, para muitos políticos e agentes públicos, governantes e a grande mídia, a insegurança jurídica e a desorganização institucional que interferem nas funções de governabilidade do Estado. A mostra recorrente de tensões políticas, assim criadas, favoreceriam aspirações autoritárias mais ou menos disseminadas e reconhecidas, a exemplo de alguns episódios da nossa história republicana.
A experiência acumulada, recolhida pela nossa história, revelou, entretanto, que esses surtos totalitários — revoltas, conflitos, golpes, intentonas ou revoluções e esboços desordenados de guerra civil — não produziram consequências políticas estáveis, tampouco duradouras. Na maior parte das vezes, culminaram com rebeliões e insurreições locais fruto dos interesses das oligarquias ou de protestos e reivindicações de setores da população.
Alguns historiadores classificam algumas dessas ações de índole totalitária, registradas no Brasil, como “golpes bem sucedidos” e “tentativas de golpe”.
Houve quem ordenasse uma “contabilidade dos golpes” registrados no curso acidentado do período republicano, os anos mais propícios a desvios autoritários, durante o qual três deles, dos mais bem sucedidos. ocorreram.
A “proclamação” da República, feita naquela noite do dia 15 de novembro, no lugar chamado hoje de “praça da República”, foi o mais ambicioso e longevo dos golpes bem sucedidos. O “Estado Novo” de Vargas e o “Movimento” de 1964 fecharam a conta das revoluções ou golpes, conforme assim os classifiquemos.
Os registros contábeis das nossas insurreições fixam os principais arrufos insurretos da nossa conturbada vida política:
Golpes: Três bem sucedidos: Proclamação da República (1889), Estado Novo (1937) e Governos militares (1964).
Tentativas de golpe: em torno de seis [Intentona Comunista, 1935; Tentativa de impedir a posse de JK, 1955; deposição de Café Filho, 2955; Revolta de Aragarças para deposição de JK, 1959; Renúncia de Jânio Quadros, 1961].
Guerras Civis: Duas. Guerra dos Farrapos (1835) e Revolução Federalista (1893)
[Anotações de Erich Boehme]
Deixamos de registrar fatos e episódios recentes em fase de avaliação e decisão judicial. em andamento. A realidade só ganha foros de verdade quando passada em julgado.
Vêm a propósito as circunstâncias e controvérsias que cercaram a publicação de um livro de impacto, as “Técnicas de Golpes de Estado, fascistas, comunista e nazistas” da autoria de Curzio Malaparte, publicado em 1931 na Itália.
A natureza do tema e o título valeu a Malaparte a classificação de fascista e, depois, de socialista e de todas as designações pertinentes, em bom léxico ideológico.
“Porque defender a liberdade sempre compensa. […] Há sempre algo a ganhar com a liberdade : nem que seja essa consciência própria da escravidão, pela qual o homem livre se distingue dos outros.. Já que é próprio do homem não viver em liberdade, mas livre na prisão”, Curzio Malaparte, Paris, 1948
De análise criteriosa, as militâncias fizeram deste texto fundador um receituário vulgar das táticas adequadas ao êxito de golpes insurrecionais para o controle do poder do Estado.
Maquiavel fora vítima, a seu tempo, e nas quadras que se seguiram à sua morte, de desvios de avaliação e crítica semelhantes. Muitos políticos e homens de governo fizeram do “Príncipe” um manual de instrução para o sucesso das suas pretensões autoritárias e absolutistas. Do “Principe”, os aprendizes de feiticeiro tiraram a conclusão que lhes servia e das “Técnicas…”, a receita reconstruída de como apropriarem-se das bridas do Estado.
Maquiavel, como Malaparte, compõem, hoje, a linha de frente de respeitáveis analistas da política e dos governos. Tornaram-se, “malgré eux”, os dispensários das motivações das militâncias múltiplas que servem a todas as ideologias.
Do livro de Malaparte muito se diria. E os contraditórios que opuseram os seus leitores carecidos de senso crítico a evidências indiscutíveis falariam mais alto.
O maior e mais veemente elogio que poderia ser feito a estas “Técnicas de Golpe de Estado”, assim como ao “Príncipe”, reside na importância teórica que as ideias e estudos de caso e circunstâncias de que se ocupam foram expostas ao lindo de tantos anos. O “Príncipe” é de 1532, em edição póstuma a Maquiavel. As “Técnicas de Golpe de Estado”, de 1931.