“O presidente dos EUA, Richard Nixon, visita a China e terá reunião com Mao Tse Tung”.
Foi o que ouvimos na abertura do noticiário da Rádio Bandeirantes de São Paulo, naquela manhã de 21 de fevereiro de 1972. Isolados em uma clareira na floresta do Vale do Ribeira, o rádio era o único meio de recepção de notícias atualizadas sobre o Brasil e o mundo. De manhã, ouvíamos a Bandeirantes; à noite, as rádios estrangeiras — estas sempre bem baixinho, para não despertar suspeitas.
Leituras, só da Bíblia e de folhas de revistas e de jornais velhos que embrulhavam os mantimentos que comprávamos mensalmente. Mas essas leituras só aconteciam nas idas ao mato, quando levávamos aquelas preciosidades junto com uma pazinha de mão, pois aparelhos sanitários não faziam parte da cultura local.
A notícia da visita de Nixon à China caiu sobre nós como uma bomba. Mas o que tinha a ver conosco um acontecimento envolvendo os EUA e aquele país tão distante? É que, por um lado, a China se apresentava ao mundo como defensora da soberania dos países contra ações imperialistas — e o PCdoB, partido em que militávamos, propagava isso. Por outro lado, àquela época, os Estados Unidos travavam uma guerra contra o Vietnã, altamente impopular até entre seu próprio povo, e haviam comprovadamente apoiado o golpe militar no Brasil. Tratava-se, portanto, de algo muito relacionado com o que fazíamos no Vale do Ribeira.
A semana que Nixon passou na República Popular da China produziu uma profunda mudança nas relações entre aquele país e os EUA, tornando-os aliados em algumas disputas pela hegemonia mundial. A repercussão desses acontecimentos nas minhas crenças e sentimentos foi demolidora.
Eu já sofrera um abalo em meus ideais quando ficara claro que a União Soviética, que eu admirava pelas revoluções que lhe deram origem e pela contribuição na derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial, agia, na verdade, para atender aos seus interesses de Grande Potência — e não por causa de um apregoado internacionalismo proletário ou pela autoproclamada defesa dos povos oprimidos.
Quando isso ocorreu, a China declarou-se substituta daquilo que a União Soviética deixara de representar. Eu estava entre os que passaram a acreditar que ela seria uma força de oposição às intenções de domínio americano e soviético sobre o mundo. Mas sua aliança com os EUA desvelou para mim essa nova ilusão. Passei então a encarar a realidade expressa com certo cinismo por John Foster Dulles, quando Secretário de Estado dos EUA: “Países não têm amigos, têm interesses.”
Na primeira oportunidade que tive de encontrar Pedro Pomar — nosso contato com a direção do PCdoB —, disse-lhe que Ruth e eu propúnhamos uma crítica pública do partido à mudança de posição da China. Ele respondeu que levaria nossa proposta ao Comitê Central e que em breve teríamos uma resposta. Quando ela veio, foi negativa. A direção do PCdoB não concordara em criticar a China.
Diante disso, Ruth e eu solicitamos nosso desligamento, pois não poderíamos permanecer em um partido que, afirmava em público “apoiar os esforços da China Popular para unir todos os povos a fim de desbaratar os planos de domínio mundial do imperialismo dos Estados Unidos”, mas se negava a criticar uma mudança tão significativa e evidente desse posicionamento.
Sobre o desligamento que solicitáramos, algum tempo depois, Pomar nos trouxe a seguinte proposta: seríamos desligados, mas, por razões de segurança, teríamos que permanecer naquela área pelo tempo necessário à realização de algumas mudanças protetivas. E, ao sermos liberados, teríamos que sair do Brasil para evitar sermos presos. Consideramos razoáveis as duas condições, pois ninguém podia ter certeza de que, sob a selvageria crescente das torturas praticadas pela ditadura, seriam resguardadas informações vitais para as pessoas que continuariam ali. Em função do acordo feito, dali para a frente só nos restava aguardar. E isso não foi nada fácil.
Nos quatro meses que transcorreram desde a aliança dos EUA com a China até o momento em que recebemos uma senha para fazer contato no Rio de Janeiro com uma pessoa que nos ajudaria a organizar nossa saída do Brasil, nossos sentimentos mudaram profundamente. Tudo se tornou diferente do período anterior, quando, mesmo com dúvidas sobre a consistência daquele projeto, nos nutríamos da crença em um ideário instigante.
A nossa convicção da necessidade de lutar contra a ditadura e as injustiças sociais continuava inabalada. Mas, perdida a confiança no PCdoB, era ainda nebuloso o novo caminho a trilhar. Olhar para a frente não ajudava a diminuir nosso desalento, mas nos fortalecíamos um pouco quando olhávamos para trás e víamos como havíamos avançado na adaptação à vida naquela floresta: nossa pele estava mais escura e resistente, nossas mãos ficaram calejadas, nossa capacidade física aumentara, a percepção das cores, dos sons, dos cheiros e das texturas da floresta se aguçara. Diminuíra o incômodo com os insetos e o medo das cobras.
Mas já não sentíamos a mesma alegria nas pescarias com tochas que fazíamos no riacho perto do nosso casebre. As caminhadas de seis horas até a sede de Eldorado para fazer compras pareciam durar o dobro, e os sacos de mantimentos nas nossas costas aparentavam pesar o triplo. A coleta de palmito nos recantos mais distantes da floresta, antes prazerosa, tornou-se uma atividade quase insuportável. As caçadas noturnas com o companheiro Dino, antes cheias de empolgação, ficaram enfadonhas.
Já não víamos mais graça quando José Luís, filho da Dona Alita, vibrando, trazia uma ave capturada em uma arapuca que fizéramos com todo o esmero. Quando, picada por uma cobra, morreu uma égua que sonhávamos ser o começo da criação de alguns cavalos, não me animei com a proposta do Dino de aquisição de outra. Perdi a disposição de acompanhá-lo na diversão domingueira de tomar duas doses de pinga (contadas) em um aglomerado de umas cinco casas, a uma hora de caminhada de onde morávamos. Sem um ideal que o animasse, aquele projeto, com fragilidades intrínsecas que percebêramos desde o início, perdera todo o sentido.
A decepção com o PCdoB, no entanto, não modificou nossa admiração por Pedro Pomar. Ele sempre foi aberto para escutar nossos questionamentos e dialogar conosco. Era um intelectual muito bem-informado sobre o mundo e o Brasil. Conhecia profundamente a história e a cultura brasileiras e amava nosso país, nosso povo e a nossa MPB.
Foi ele quem traduziu do inglês para o português os dois primeiros volumes do livro de William Shirer, Ascensão e Queda do III Reich, considerada uma das obras mais relevantes sobre o nazismo. Pomar dedicou a vida inteira à defesa de seus ideais de construção de uma sociedade sem exploração e opressão, enfrentando corajosamente a ditadura do Estado Novo e a iniciada em 1964. Foi assassinado aos 63 anos, em 1976, ao ser metralhado com outros membros do Comitê Central do PCdoB durante uma reunião partidária em São Paulo, no que ficou tristemente conhecido como a Chacina da Lapa.
Não pode deixar de ser dito que, passados alguns anos da visita de Nixon, dirigentes do PCdoB passaram a adotar publicamente posições críticas em relação à China, o que evoluiu até o rompimento de relações com seu homólogo chinês.
Na conversa de despedida com Pomar, depois de decidirmos que o melhor destino para nosso exílio seria o Chile, ele nos perguntou se, mesmo não sendo mais militantes do PCdoB, poderíamos ajudar a divulgar naquele país o que estava ocorrendo no Araguaia. Nossa resposta só podia ser positiva, pois, ao aceitarmos o exílio, não desistíramos de continuar nossa luta contra a ditadura.
Nossa chegada ao Rio de Janeiro, o assassinato sob tortura da pessoa que estava nos ajudando na preparação da viagem para o Chile e o que tivemos que fazer quando ficamos totalmente sem conexões políticas… ficam para uma próxima historieta.
De Maranguape
João de Paula
