A uma amiga sem limites
Meto o dedo na ferida. Distraída, sento no chão quente, misturo futuro e presente. Divulgo segredos, divago no pico das horas. Assino degredos, rubrico sentenças de morte. Embaralho as senhas dos cofres, revelo guardados antigos. Mudo de lugar palavras e letras dos livros.
Liberto os cães, arrebento cadeados, abro gaiolas. Com a boca na torneira, bebo da água ardente. Giro ao contrário as manivelas. Devoro manga com leite, como bananas à meia-noite, descasco abacaxis com as mãos nuas. Não escuto quem me acusa, revido a quem me açoite. Dou preferência à carne crua.
Corro com facas, brinco com canivetes. Lépida, livre, lâmina afiada, corto esquinas, recorto atalhos, retalho em pedaços os sonhos mais leves, ou mais ferinos.
Embarco sem passagem de volta – nem de ida. Vou num pé, retorno noutro. Ignoro mapas, polos, linhas, fusos, latitudes, longitudes. Desnorteio as bússolas. Com a agulha delas entre os dedos, costuro novos destinos.
Dou aulas de indisciplinas. Desfaço a lógica dos relógios. Amasso o tempo, mastigo minutos, degusto as horas e sei o exato momento de dar o troco, com unhas e dentes, ao que vier pela frente.
Durmo tarde, rio à toa. Acordo quando quero, a qualquer som e a qualquer cheiro. Tranco as janelas à luz do dia e escancaro entrada para as estrelas – desprezando, embora, o brilho delas.
Com os dedos em pinça, recolho as cartas das crianças perdidas, as súplicas dos internados, as mensagens de despedida, os rabiscos dos aprisionados, os laudos médicos definitivos, o choro dos desesperados, os bilhetes dos suicidas. Rasgo tudo sem ler: conheço cada motivo.
Levo corda para a casa do enforcado, sem remorso e sem cuidado. Cutuco onça com vara curta, mais de uma vez, e já beijei a mão morta da Senhora Dona Inês. Salto acima das convenções. Com cara e coragem, não costumo sentir mágoa: independo de regras, desrespeito condições.
Voo semeando ventos, e que venham as tempestades. Esmurro ponta de facas, aponto estrelas, com os dedos, apago velas nos enterros. Juro de pés juntos que nunca erro, e não dou ouvidos aos que chamam realidade.
Sei com quantos paus se faz uma canoa. Nunca ligo o nome à pessoa. Passo por baixo de escadas, enxugo lágrimas de crocodilo, desdenho conselhos. Sob o sol tiro um cochilo. Na chuva, exponho os espelhos.
Varro a casa de fora para dentro, e empurro o lixo para baixo do tapete. Hoje estou aqui, amanhã me ausento. Brinco com fogo e desconsidero unguentos. Viro e reviro o jogo, troco o naipe das cartas, vicio os dados, e desapareço em um rabo de foguete. Jamais fui avistada: sei tomar meus cuidados, disfarçada.
Com gatos pretos reparto afetos. Provo laranja de beira de estrada, quatro pedras em cada mão. Não distingo pensamento de ação. Cuspo para cima os nomes que ardem na ponta da língua. Nunca tenho nada a ver com o peixe, e deixo aviso: que depois ninguém se queixe.
Não tenho medo de nada. Destemida, a mim só me assusta a Vida.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder