A PRIMEIRA COISA QUE UMA DITADURA FAZ É OUTORGAR-SE UMA CONSTITUIÇÃO, ASSIM COMO AS EMPRESAS FAZEM AO REGISTRAREM O ATO CONSTITUTIVO NA JUNTA COMERCIAL
[FUNDACAO E PRAZO DE VALIDADE DE UMA DITADURA]
Tenho a idade de sobrevivente a dois episódio marcantes da vida política brasileira — dois governos autoritários autoconstituídos. Chamo-os assim, por precaução: as ditaduras não gostam do epíteto de “ditaduras”, longe de mim incorrer no azedume de alguns sobreviventes dos dois eventos patrióticos — do Estado Novo e de 1964.
Vivi aos 9 anos o apagar das luzes da República getulista. Vivi, também, já adulto, os 25 anos dos governos militares, em dose continua, homeopática.
“Gloriosa” foi assim chamada a revolução de 1688, sob a espada dos Reis dos ingleses, escoceses e irlandeses, Guilherme III e Maria II, assinalando o fim do absolutismo na Inglaterra.
O selo da glória seria emprestado, quatro séculos depois, ao movimento em defesa da família e da fé, contra a república sindicalista em discreta construção. “Redentora” chamaram-no os de boa fé e os seus detratores.
Na última quadra, autointitulada de “revolucionária”, percebi, munido de alguns apetrechos da idade da Razão, presumidamente dotado de um pouco de bom senso, que nem todos os brasileiros eram “personas gratas” ao sistema instalado.
Aos “novos baianos” que faziam a sua estreia como insurretos da MPB nos festivais da contestação, opuseram-se alguns artistas “oficiais”, com seus slogans e suas barbas em desalinho revolucionário, embora sem ideologia definida. Não eram tantos como os de hoje, nem tão bem remunerados, mas esticavam as cordas das guitarras e tiravam o seu sarro com serena tranquilidade, em busca de inspiração.
É dessa época a cançoneta em ritmo de marcha “Brasil eu te amo…”. E o slogan pedagógico dirigido aos maus meninos e às meninas más: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Muitos atenderam à recomendação e bateram asas para Paris e Londres. Tudo, porém, chega um dia ao seu fim. Com a partida do último general-presidente, reformado, aborrecido por tanto tempo de lide, e o desembarque de um maranhense, senhor de muitas habilidades políticas, bateu, finalmente, a hora, do regresso.
No Brasil, as ditaduras se anunciam verbalmente, pelos pronunciamentos ou pelas armas recolhidas ou, ainda, pela lógica de sofismas jurídicos. Todas, movidas por um profundo instinto democrático que a fazem sacrificar a democracia — para defendê-la. Esses espasmos do arbítrio sustentam-se no poder, assim o demonstra a história, pela força da inércia, vão, aos poucos, perdendo a vontade e o élan para as artes do governo.
O brasileiro não gosta de compartilhar da oposição em tempos regulares, menos ainda nas insurreições. É da sua índole. Quando menos se espera, a sedução do poder o convence a atender ao chamado irresistível da pátria. E a aceitar da sua indulgência os benefícios da adesão.
O Estado Novo e “1964” foram intervenções autoritárias e duradouras. O primeiro, alcançou 15 anos; o segundo, 25, um quarto de século. De tão longas e persistentes, com seus atos instituidores e até mesmo Constituições outorgadas, houve quem lembrasse, à época, que dada a impossibilidade de mudar de governo, “mudássemos de povo”… [Lustosa da Costa em sua coluna do jornal UNITÁRIO].
Em se tratando de ditaduras, cada uma delas tem, entretanto, o seu prazo de validade. Mas, geralmente findo o tempo presumido nas rédeas do Estado, saem de fininho, exauridas por uma ambiciosa faxina patriótica. Outras tantas vezes, alguns tiros perdidos repuseram a ordem constitucional em vigor. Dominados por uma irresistível fé missionária, puseram mão na massa, sem povo, sem ajuntamentos ou convescotes de bar, animados pela retórica, arma poderosa em tempos de guerra, com alguns discursos de ocasião.
Sem derramamento de sangue ou desassossegos desnecessários.