Fumar, não! Por João de Paula

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— Tô lascado. O papai vai me ver fumando!

Foi o que disse Aristeu Holanda, estudante de Economia da UFC, ao ver a foto de capa da revista Veja, de 16 de outubro de 1968, que noticiava a prisão dos oitocentos participantes do XXX Congresso da UNE. Fumando um vistoso cigarro, ele se destacava entre as pessoas espremidas na carroceria de um caminhão que transportava, de Ibiúna para a capital paulista, parte dos aprisionados naquela operação repressiva.

Espirituoso como é, Aristeu não perdeu a oportunidade de fazer uma piada sobre a situação, provocando risadas em todos nós, que estávamos presos com ele. Não termos perdido a disposição para rir não significava, porém, que as coisas estivessem fáceis ali no Presídio Tiradentes.

Amontoados em celas superlotadas, sem as mínimas condições para alojar seres humanos, sofríamos pressões psicológicas de todo tipo — e muitas incertezas sobre o que seria feito conosco. Ainda assim, não nos aquebrantamos. Pelo contrário: com os parcos meios ao nosso alcance, começamos a protestar contra a injustiça da nossa prisão.

Com batom fornecido pelas colegas, Fausto Nilo desenhou a palavra LIBERDADE em uma faixa improvisada de papel higiênico. Pregamos nas grades voltadas para a Avenida Tiradentes. A faixa atraía os passantes, que paravam na calçada para ouvir nossos gritos:

— A UNE somos nós, nossa força, nossa voz!

Quando fazíamos uma pausa, ouvíamos, de uma cela no andar de baixo, as vozes dos presos comuns gritando:

— Continua, estudante! Mostra a força da UNE!

Talvez nunca tivessem ouvido falar da UNE, mas pareciam gostar daquela agitação que quebrava a monotonia da vida carcerária. Claro que não demorou para os guardas arrancarem nossa faixa.

Aqueles presos comuns podiam até não saber o que era a UNE. Mas os agentes da ditadura sabiam — e odiavam. Tanto que uma das primeiras ações dos golpistas de 1964, no Rio de Janeiro, foi metralhar e incendiar a sede da entidade, na Praia do Flamengo. Pouco depois, decretaram sua ilegalidade, começaram a prender dirigentes estudantis e a fechar, em todo o país, as uniões estaduais, os diretórios centrais e os centros acadêmicos.

Diante do ataque ao XXX Congresso, os universitários brasileiros reagiram mais uma vez às tentativas do governo ditatorial de destruir sua entidade nacional. Manifestações ocorreram em todo o Brasil, enfrentando forte repressão e exigindo, nas ruas, a nossa libertação.

Isso nos estimulou a elevar o nível dos nossos protestos no presídio. Entramos em greve de fome.

Em meio à greve, houve um episódio inusitado. Fomos despertados por um barulho estranho e, ao acendermos a luz da cela, nos deparamos com um colega de boca cheia que se justificou rapidamente:

— Estou só comendo estas bolachinhas… deixem eu terminar… amanhã faço minha autocrítica.

Não lembro se ele fez a tal autocrítica, mas, com certeza, comeu as três bolachas que restavam.

De repente, nós — os 70 cearenses que participavam do Congresso —, sem qualquer explicação, fomos retirados das celas e colocados em dois ônibus. Escoltados por carros da polícia de São Paulo, pegamos uma estrada sem saber onde aquilo ia dar.

A certa altura da viagem, a escolta simplesmente desapareceu. Então, os motoristas nos informaram:

— Vocês estão livres. O destino agora é Fortaleza.

Dois dias depois, chegamos em casa.

Passados alguns dias da nossa volta, foi decretada a prisão preventiva de dez dos cearenses que haviam sido libertados. Eu era um deles. Diante disso, só restavam duas alternativas: resignar-me a ser preso arbitrariamente de novo ou fazer o possível para evitar a prisão.

Escolhi a segunda. Abandonei às pressas o apartamento onde morava — que, pouco depois, foi invadido e revirado pelos agentes da repressão — e passei a usar documentos com outro nome. Esses documentos foram gentilmente fornecidos por uma colega da universidade que trabalhava numa repartição pública de Fortaleza.

Na condição de candidato à diretoria da UNE e usando outra identidade, viajei para o Paraná, onde seria realizado, em segredo, um dos congressos regionais que davam continuidade ao evento interrompido em Ibiúna.

Mas… o que aconteceu ali já é assunto para outra ocasião.

João de Paula Monteiro Ferreira, 79 anos, ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha.

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