Somente um mágico das palavras teria condições de transformar em literatura, pontilhada de ironia,o que poderia ser mais um tedioso e burocrático Relatório de Prestação de Contas. Mas foi essa a magia que Graciliano Ramos fez, nos dois Relatórios referentes à sua breve gestão como Prefeito do município alagoano de Palmeira dos Índios.
Os dois governadores do Estado de Alagoas, que se sucederam entre 1928 e 1930, receberam em mãos o que deve ter sido uma surpresa para ambos: um texto escrito com a genialidade de quem domina seu ofício – e que não era a prática da Política.
O primeiro Relatório trazia a data de 1929. Nele, o prefeito Graciliano apresentava um resumo dos trabalhos realizados no município do qual assumira a liderança, no ano anterior. Sua primeira ação tinha sido “estabelecer alguma ordem na administração”. Sua luta contra o sistema se dera de forma tenaz, enfrentando obstáculos dentro e fora da Prefeitura: “Dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis”. Alguns julgavam que tudo ia bem. Outros, dizia ele, “me davam três meses para levar um tiro”.
Não levou. E seguira relatando as dificuldades com os custos da manutenção da cidade, que incluíam iluminação pública, ampliação e pintura do açougue público, reparo nas ruas esburacadas, aquisição de ferramentas para aterro, listando objetos que não costumam ter espaço na vida de um jornalista, de um escritor: “Adquiri picaretas, pás, enxadas, martelos, marrões, marretas, carros para aterro, aço para brocas, alavancas”.
A atenção dele no cargo abrangia a manutenção do Cemitério da cidade (“Enterrei 189 mil réis”); o controle ao costume burocrático de enviar telegramas a propósito de tudo (“Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o Deputado F. esticou a canela – um telegrama”); e as demandas contraditórias de seus munícipes.
“Durante meses mataram-me o bicho do ouvido com reclamações de toda ordem, contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para a cidade” – anotara. “Chegaram lá os pedreiros – e outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de reis, dizem”. Ironizara: custariam, sim, porém “não tanto quanto as pirâmides do Egito”…
Na conclusão desse primeiro Relatório transparece o dom de seu criador: “Procurei sempre os caminhos mais curtos” – garantira. “Nas estradas que se abriram, só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis”. Fato é que entre retas e curvas os relatórios deixaram as fronteiras alagoanas e chegaram às mãos do editor carioca Augusto Frederico Schmidt, iniciando a publicação dos livros que levariam o escritor à imortalidade.
Trouxe aqui Graciliano Ramos por conta de minha busca informal pelo paradeiro de cearenses fora da nossa terra. No trecho do Relatório em que ele trata da limpeza pública, e do Posto de Higiene de Palmeira dos Índios, refere-se ao médico cearense Leorne Herbster Menescal. Quem diria que Leorne, nascido em Fortaleza no ano de 1883, sendo, portanto, nove anos mais velho que Graciliano, teria uma participação, ainda que pequena, na história do escritor.
Depois de haver livrado a cidade do “lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram”, o Prefeito achara por bem contratar com o Dr. Leorne Menescal, à época na chefia do Serviço de Profilaxia Rural, a instalação de um Posto de Higiene na cidade.
Uma boa escolha de Graciliano. Leorne se formara na Academia de Medicina do Rio de Janeiro. Seguira para vários anos de estudos na França, e no retorno fora nomeado médico da Prefeitura de Belém e médico da saúde de seu porto. Por 12 anos clinicara no Acre, de onde retornara ao Rio, sendo um dos primeiros inspetores sanitários e chefe da Comissão de Profilaxia Rural do que ainda se denominava Distrito Federal.
No Rio Grande do Norte, chefiara a Comissão de Combate à peste bubônica e febre amarela. Passaria uma temporada no Espírito Santo, onde casara, e em Fortaleza. Em Alagoas, onde o destino o conduziria a entendimentos com o prefeito Graciliano, assumira a direção dos trabalhos do Serviço de Saúde Pública.
Nunca saberemos o que conversaram, os dois, naquela pequena cidade nordestina, um interlocutor repleto de memórias de lugares, o outro aperfeiçoando sua intuição do que viria. Mas penso que o cearense Leorne Menescal tenha encontrado algum lugar na lembrança de Graciliano, um escritor capaz de confessar que “o dia todo espiava o movimento das pessoas, tentando adivinhar coisas incompreensíveis” – a exemplo desse encontro casual entre dois nordestinos, mestres em suas respectivas artes.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.