Pela sua dolorosa paixão…Tende misericórdia de nós e do mundo inteiro. Pela sua dolorosa paixão… Tende misericórdia de nós e do mundo inteiro. Cinco, sete, dez vezes o apelo é repetido dentro da Capela: Pela sua dolorosa paixão… O mesmo tanto de vezes, os presentes respondem em coro: Tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.
Isso dentro da Capela do Socorro, em Juazeiro do Norte, o local do derradeiro repouso do fundador, do padroeiro da cidade. Bem aos pés do túmulo dele, do padre Cícero Romão Batista. Do Santo Padre filho do Crato, e que teve Juazeiro do Norte como seu filho.
A voz feminina insiste: Pela sua dolorosa paixão… E os homens, as mulheres, vestidos de marrom, uma faixa de corda atada à cintura, respondem em coro: Tende misericórdia de nós e do mundo inteiro.
Quase todos os bancos de madeira estão ocupados, mas consigo um lugar para sentar. O calor é quase uma presença física, opressiva, dentro do ambiente santificado da Capela. Reza-se o terço, interminável, Pai-Nosso e Ave-Maria entrecortados pelo apelo da voz feminina, relembrando a dolorosa paixão, a necessária misericórdia.
O rosto dos romeiros é o retrato tridimensional de um Nordeste eterno: uma mulher que chora, ambas as mãos erguidas em súplica, a emoção desenhada nas rugas que marcam sua face sem idade; uma menina impaciente, que puxa o braço da mãe, querendo ir embora; um homem que sustenta o chapéu de palha junto ao peito, feito um escudo protetor; uma idosa empurrada para frente em sua cadeira de rodas; um casal jovem orando, de olhos fechados.
Querem, imploram, creem e precisam de milagres. De curas físicas. De conforto emocional. De alimento espiritual. Não duvidariam se o patriarca de Juazeiro se erguesse de seu túmulo, ali diante do altar, como Cristo fez no Santo Sepulcro. Para eles, para os romeiros vindos de todas as regiões do País, o padre Cícero sequer está morto. Simplesmente encantou-se, ascendeu ao Paraíso de corpo e alma, para de lá abençoar e proteger seu povo.
“Vou para o Céu, rogar a Nossa Senhora por vocês todos” – sei que está inscrito na lápide, aos pés do altar-mor, porque pesquisei antes de vir. Os que estão ali, na Capela, sabem também que foram essas suas palavras de despedida. Como sabem, de cor, do fundo do coração, os conselhos dele, práticos, de uso para toda vida: Em cada sala um altar, em cada quintal uma oficina; Deus nunca deixou trabalho sem recompensa, nem lágrima sem consolação; Quem matou, não mate mais. Quem roubou, não roube mais; O verdadeiro romeiro vive sempre em fraternidade.
Pela sua dolorosa paixão… A voz feminina não para. Há alguma coisa de hipnótico na voz dela, ao microfone, dessa mulher oculta em algum recanto da Capela, que não consigo localizar. Tende misericórdia de nós e do mundo inteiro – os romeiros suplicam em um mesmo tom, em voz uniforme, as palavras se erguendo como fumaça de incenso, até esbarrar nos vitrais lá no alto, sair pelas três portas abertas na fachada, pelas portas e janelas laterais.
Do lado de fora, o sol explode em luz e as sombras se encurtam, pela proximidade com o meio-dia. Para quem está do lado de dentro, não existe relógio capaz de indicar a hora certa para rezar: toda hora é hora, assim como tudo o que existe sobre aquele chão é sagrado.
O comércio mantém respeitosa distância da Capela. Os vendedores não atuam em seu pátio, nem diante dela. Por força da Fé (quem sabe talvez, por ordens da Prefeitura…), permanecem à distância.
Não se assemelham aos vendilhões do Templo: àqueles comerciantes de bois, de ovelhas, de pombas, àqueles cambistas com as moedas empilhadas sobre as mesas de negócios, dispersos a golpes de um chicote improvisado, feito de cordas, por um Cristo que, pela única vez em todo o livro da Bíblia, mostra sua tão humana irritação.
Pela sua dolorosa paixão… ainda escuto na saída, e sou mais uma a responder, brutalmente atingida pela sinceridade contagiosa dos romeiros: Tende misericórdia de nós. E do mundo inteiro.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.