Quando o futebol ainda era arte — e os deuses estavam em campo.
Um nasceu para encantar, o outro para pensar — e ambos revolucionaram o futebol. Pelé era a força divina em chuteiras: inventava o impossível com naturalidade, como se obedecesse a um dom anterior ao treino. Cruyff, o cérebro do jogo: via espaços antes que existissem, jogava com uma clareza quase mística. Um veio do Brasil profundo, o outro da Holanda renascentista. E mesmo tão distantes, tocavam o mesmo altar: o do futebol elevado à arte.
Johan Cruyff, com seu inesquecível Ajax, venceu tudo e todos. Liderou uma revolução silenciosa com a bola nos pés e a mente à frente do seu tempo. Tinha bons jogadores ao redor, mas nenhuma lenda — e por isso precisou ser mais. E foi. Tricampeão europeu (1971/74), campeão mundial, levou um time desconhecido ao topo do mundo com inteligência, leveza e autoridade.
Pelé, por sua vez, brilhou com o Santos e com a Seleção, cercado de monstros sagrados como Didi, Garrincha, Tostão e Rivelino — soube ser maior do que todos. Se Cruyff foi o arquiteto da beleza tática, Pelé foi o milagre em estado puro. E até na celebração do gol eram distintos: jamais um gesto grotesco — apenas o salto e o punho bradando, no respeito máximo ao momento da alegria.
Se a pergunta for quem foi o melhor, a resposta será sempre subjetiva — mas é certo que nunca mais um jogador fará o que Cruyff fez com aquele Ajax: derrotar por três anos consecutivos todos os gigantes da Europa com um estilo novo, encantador e implacável.
A lacuna dos dois não é apenas nostalgia — é a lembrança de uma época em que o futebol era talento, invenção e ritual. Hoje resta a memória, que não consola: apenas cobra. Como disse Nietzsche, “alguns nascem póstumos” — Pelé e Cruyff são encaixes perfeitos desta máxima filosófica.
Outros craques surgiram depois. Para além da bola, merecem honras e devem ser sempre lembrados — dentre os quais destaco Zidane, Baggio, Cristiano Ronaldo, Eusébio, Messi, Mário Kempes, Rivaldo, Ronaldo, Zico, Falcão e Beckenbauer.
Não consigo ver os jogos atuais sem um travo de revolta. O ufanismo de locutores que se emocionam com cabeças de bagre me atordoa. Às vezes, desligo o som. Fico apenas com a imagem muda, esperando que o campo diga algo — mas ele silencia. A bola ainda rola, mas parece não saber mais o caminho da beleza. São raros os momentos de outrora.
Pelé e Cruyff eram mais que jogadores — eram mestres, quase profetas. E como diz a Escritura: “Honra seja dada a quem honra merece” (Romanos 13:7). O futebol já teve seu auge — e agora assiste a um declínio assustador.
O passado não é saudade, é advertência. Marcus Tullius Cicero nos ensinou: “Não saber o que aconteceu antes de nós é continuar a ser crianças”. O espelho do presente reflete ausência de sabedoria.
Walter Pinto Filho é Promotor de Justiça em Fortaleza, autor dos livros Cinema – A Lâmina que Corta e O Caso Cesare Battisti – A Confissão do Terrorista. www.filmesparasempre.com.br