Trata-se de um casaco. Um simples casaco de mangas longas, dotado de um zíper que permite a abertura frontal por parte de seu usuário. Ou, até onde posso ver, por parte de sua usuária, pois me parece um casaco feminino. É curto, o casaco, terminando talvez na altura da cintura de sua dona. E sua cor tende para o marrom, mais precisamente para o tom neutro criativamente chamado camelo, na paleta atual de cores quentes e cremosas.
O casaco pende de um cabide branco, preso a uma das malhas da tela que protege a janela da área de serviço do prédio que confronta o meu. Não há nele, no casaco, nada que o distinga de outros casacos que costumam circular por aí, nas cidades e países nos quais a temperatura exija seu uso. Entretanto, venho há meses dedicando a ele a minha atenção, despertada por sua permanente imobilidade.
Roupas penduradas nas redes protetoras dos apartamentos têm passagem breve. Ficam por ali um dia ou dois, expostas ao sol e ao vento. Tão logo secam, ou se libertam do cheiro de guardado, das manchas do mofo, são recolhidas ao guarda-roupa, às malas e baús, a seus lugares de direito
Esse casaco não.
Ano passado já ocupava esse mesmíssimo posto na janela. Passaram-se os dias, as semanas, os meses, posso garantir que já se passou mais de um ano – e lá continua ele, imexível, inamovível, braços ocos pendentes rumo ao chão, inerte no tempo e no espaço da área de serviço daquele apartamento.
Entendo que nosso clima dispensa casacos. Por experiência própria, vim a precisar de um casaco apenas aos 20 anos, quando mudei para Brasília. Até então, uma blusa de mangas compridas, usada sobre uma camiseta, se fazia suficiente para enfrentar o clima de – digamos – Guaramiranga, nossa ingênua referência para baixas temperaturas.
Entendo, portanto, que pelo menos em parte se justifique a demora de sua dona para recolher o casaco, e removê-lo do lugar em que se encontra, já que dele não necessita em sua rotina. O que não consigo entender é o fato de ter ele atravessado, intocado, inalterado, tantos meses de férias e a profusão de feriados, tantas tardes de sol e manhãs de chuva, tanta poeira levantada pela demolição de um prédio vizinho, ter experimentado tudo isso sem que uma alma sequer, dentro da casa, tenha tido a iniciativa de guardá-lo.
Longe dele qualquer semelhança com o famoso casaco descrito pelo russo Nikolai Gogol, no conto traduzido para o português como O Sobretudo, ou O Capote, um conto terrível entranhado na miséria da Rússia oitocentista. Mil vezes remendado por seu envergonhado dono, mil vezes ridicularizado pelos colegas na repartição pública, tanto seu dono quanto o novo casaco sofridamente adquirido estavam fadados a um triste fim desde as primeiras linhas.
Não creio que esse casaco na janela, cinco andares abaixo da minha, esteja destinado a ser roubado com desumanidade e selvageria, em uma praça deserta, mal e mal iluminada por fracas lanternas a óleo, incapazes até mesmo de refletir a luz na alvura da neve. O casaco que avisto, com seus braços vazios, paira suspenso entre o piso e o teto de uma cidade acostumada a um céu azul, ensolarado, e não ao céu cinzento de São Petersburgo, onde o infortunado personagem de Gogol vivia e sofria. E por isso mesmo não entendo o que impede alguma criatura do apartamento em frente de recolhê-lo da janela, dando a ele o devido destino.
Está condenado a jazer na área de serviço, tão estável como a máquina de lavar, a pia da lavanderia, o local para guardar as vassouras, os baldes, os panos de chão –, com os quais, aliás, costuma de vez em quando compartilhar seu espaço ao sol.
Fecho minha janela e paro de espiar as janelas alheias. Sei quando dar um ponto final às minhas elucubrações sem futuro. Melhor assumir que há tempos o casaco deixou de ser um simples objeto, e que ele é hoje ponto de referência da minha paisagem real, e da minha curiosidade eternamente insatisfeita.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.