Por Angela Barros Leal
Articulista do Focus
Deve existir algum artigo, algum parágrafo, algum inciso, na lei do Contrato Social assinado quando nascemos, que indique o que se deve fazer quando uma mulher, sentada à sua frente, exclama em voz alta: Conheço você de algum lugar.
O abismo que existia entre você e ela se estreita de súbito. O salão iluminado, no qual outras mulheres também aguardam os mesmos cuidados que você, se move sobre trilhos invisíveis. O espaço encolhe para caberem apenas duas criaturas: você, e a mulher que conhece você de algum lugar. Aos lados, a plateia de desconhecidas.
Quem será aquela criatura – você se pergunta, abrindo um sorriso falso, analisando cabelos, olhos, nariz, boca, formato do rosto dessa que está à sua frente. O que você vê não encontra registro compatível no seu arquivo de imagens, movimentado velozmente por detrás das suas pupilas, estabelecendo conexões sinápticas com seu cérebro.
Acho que já encontrei com você em algum lugar –, é o que você diz, língua mergulhada no poço da falsidade.
A mulher se anima. Parece haver de fato uma conexão entre a memória dela e a sua. Algo que deve unir vocês duas para além desse ambiente impessoal, com horas marcadas que não se cumprem. Um tipo de laço que ata vocês a momentos anteriores, infelizmente não situados nas mútuas lembranças.
Deve ter sido do Santa Cecília – ela sugere. Não foi. Você estudou no Imaculada. Um toque de decepção se instala no rosto da mulher, que não desiste. Então pode ter sido do Clube do Vôlei – arrisca ela. Você passeia seu olhar pelo teto, retrocedendo à última vez em que você se empenhou em atividade física grupal, ainda no Ensino Fundamental. Não. Você nunca frequentou o Clube do Vôlei.
Talvez da Beira-Mar – propõe a mulher, que revela sair de casa ao alvorecer de todo santo dia, para saudáveis caminhadas, enquanto você ainda sonha com o bater das asas dos anjos. Você omite esse detalhe pessoal, e diz preferir o horário da tarde. No curso de francês; na turma da Oswaldo Cruz; no grupo de leitura. Não; não; e não.
Um tantinho desapontada, ela saca do bolso do colete a carta das amizades. Será que não nos encontramos na casa da Fatinha, casada com o Manu, cunhado da Mabel –, e dá prosseguimento a uma fileira de nomes e apelidos que não ressoam nenhum sinal de reconhecimento na sua constelação de relações.
A essa altura, todas as mulheres presentes estão participando da sequência de tentativas da pessoa que julga conhecer você, e do seu consistente rebate de negativas. Uma ouvinte do diálogo entra na conversa. Ela, sim, conhece não só o cunhado da Mabel, como também outros do mesmo círculo. As duas se entretém em animada troca de dados, que possibilitam minutos de sossego enquanto você reorganiza seu fichário mental, e tenta encontrar o mínimo indício de quem seja a criatura.
O diálogo entre ambas se esgota. Incansável, a mulher volta-se outra vez para você, arriscando novas hipóteses.
Os números oficiais demonstram que o nosso planeta conta, hoje, com mais de 8 bilhões de habitantes. E juntamente a você aconteceu hoje a presença dessa pessoa, empenhada em revolver as camadas arqueológicas do seu cérebro, insistindo em identificar algo que você considera de menor importância.
Somos todos irmãos, desde Adão e Eva, você pensa. Todos da mesma espécie. De um jeito ou de outro nos parecemos. “Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais, não morremos? E se vós nos ultrajais, não nos vingamos?” – escreveu Shakespeare, há mais de 400 anos, em seu O Mercador de Veneza.
Você e ela podem ter cruzado em filas paralelas de supermercado, ou aguardado alguns segundos em uma calçada, antes de atravessar uma rua. É possível que vocês tenham parado um carro ao lado do outro, em um sinal vermelho, ou terem se entrevisto por aí, nessa cidade com quase 3 milhões de moradores.
Num susto, ela exclama que descobriu! Por fim lembrou de onde vem o conhecimento de vocês. Ela é amiga da Verinha, tia da primeira esposa do Daniel, seu primo, e vocês se encontraram em um fim de semana no sítio deles.
Você permite que seu rosto se acenda como uma árvore de Natal, na mais evidente alegria, repartida com as pessoas presentes. É verdade, você bate palmas, encantada, quando de fato você não tem primo algum chamado Daniel, e desconhece não só a primeira esposa dele, a tia dela, a própria Verinha. Seu alívio maior está em ter suportado a pressão e conseguido cumprir, diante dos presentes, com o artigo correto do Contrato Social – qualquer que seja ele. O resto é detalhe.