Acusado pelo assassinato de um executivo de uma grande empresa na área de saúde privada, Luigi Mangione foi detido na última segunda-feira (9) – Créditos: Reprodução/Instagram

Só nos EUA, 250 mil morrem ao ano porque os planos de saúde negam tratamento, à caça de maiores lucros. Por isso, assassinato de um CEO da medicina de negócios gerou uma onda de ironia e desprezo. Poderão daí emergir revolta e ação?

Título original:
The “Silent Violence” of Corporate Greed and Power

Há décadas, grupos de consumidores vêm fazendo alertas claros sobre a “violência silenciosa” que produz inúmeras vítimas devido ao poder desenfreado da ganância, negligência criminosa ou indiferença das corporações. corporativa, da negligência criminosa ou da indiferença. Eles apresentam estatísticas e estudos de caso que a mídia e os legisladores, em sua maioria, ignoram ou punem muito brandamente.

Os executivos das corporações simplesmente recorrem a seus advogados e especialistas em relações públicas para descartar esses alertas e apelos. Sabem que as histórias um dia cairão no esquecimento, bastando que fiquem em silêncio ou murmurem arrependimentos genéricos, prometendo melhorias vagas em seus produtos e serviços.

Mas, ano após ano, o número de mortes aumenta, em vez de diminuir, e os horrores continuam. Por exemplo, pelo menos 5 mil pessoas morrem por semana em hospitais nos Estados Unidos devido a “problemas evitáveis”, concluiu um estudo revisado por pares de médicos da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, em 2016. Este é apenas um dos muitos estudos sobre infecções hospitalares, uso excessivo de antibióticos, práticas incorretas ou o que se chama de “erro médico” – prescrição de combinações de medicamentos com efeitos colaterais, “acidentes”, desqualificação e falta de pessoal.

Não houve nenhuma mobilização, seja por parte de autoridades governamentais ou de executivos do setor, para enfrentar esse impacto espantoso, de pelo menos 250 mil mortes por ano!

Por trás desses números estão pessoas reais, com famílias, amigos e colegas de trabalho — chocados, indignados ou desolados com perdas de vidas evitáveis e danos preveníveis. Alguns deles, sem dúvida, conheciam as causas específicas e exigiram correção e compensação, mas em vão.

As mortes evitáveis também decorrem da ampla negação de cobertura por parte de seguradoras de saúde gananciosas, não regulamentadas ou sub-regulamentadas, que maximizam os lucros e os bônus dos executivos. Muitas seguradoras agora utilizam inteligência artificial para desgastar os consumidores.

Cerca de duas mil pessoas por semana nos Estados Unidos perdem a vida porque não conseguem pagar por um seguro de saúde que cubra custos de diagnóstico e tratamento em tempo hábil. Padrões sistêmicos de negação de benefícios pelas seguradoras também causam mortes e ferimentos. As empresas utilizam algoritmos que automaticamente atrasam ou negam procedimentos necessários, sem sequer analisar os prontuários médicos dos pacientes ou falar com seus médicos.

As apólices de seguro estão repletas de letras miúdas, deduções, coparticipações, isenções e exclusões que deixam os consumidores e médicos à beira da loucura. Os prêmios de seguro são pagos antecipadamente pelos pacientes ou empregadores, sob promessas publicitárias.

Nos últimos dois meses, os consumidores foram bombardeados por uma avalanche de anúncios de televisão de grandes seguradoras, como Aetna, Cigna e Humana, promovendo seus planos Medicare (dis) Advantadge voltados para beneficiários idosos. Os anúncios retratam essas empresas como instituições de caridade, e não como rentistas astutos. Na realidade, a negação de benefícios é maior nesses planos do que no Medicare [o sistema de Saúde pública não-universal dos EUA]. Além disso, esses planos empurram os pacientes para redes restritas de médicos e hospitais e os submetem a um uso excessivo e terrível de “autorizações prévias”. Isso significa que algum profissional da empresa, inacessível, decide se um paciente pode obter reembolso médico por um tratamento específico. Isso resulta em uma sobrecarga de papelada para os médicos, lucros imensos para as empresas e tratamentos degradados para os pacientes.

Em outubro de 2023, a NBC publiou uma reportagem intitulada “Negar, negar, negar: Ao rejeitar pedidos, os planos Medicare Advantage ameaçam hospitais rurais e pacientes”. Produzida pela renomada repórter Gretchen Morgenson, a peça revelou outro impacto mortal dos programas Medicare (des)Vantagem – agora, sobre hospitais rurais nos Estados Unidos.

Essas empresas estão tão enraizadas que se tornaram amplamente imunes a denúncias. Manipulam o sistema para restringir tanto os pacientes quanto os profissionais de saúde. A indústria da saúde pratica cerca de 360 bilhões de dólares em fraudes e abusos de cobrança informatizada todos os anos. As ações judiciais são mínimas, e os legisladores, em sua maioria, permanecem indiferentes enquanto contam o dinheiro das doações para suas campanhas eleitorais. Você viu algum político destacado mencionar, nas campanhas eleitorais, o impacto devastador da ganância da indústria médica sobre pessoas inocentes ou os contribuintes?

Sob o aparente silêncio, há um redemoinho fervilhante de ressentimento, raiva, frustração e amargura em relação aos abusos corporativos. Essas reações são mais pronunciadas em áreas pobres ou locais de trabalho, onde as pessoas são submetidas a poluição sufocante ou exposição a toxinas cancerígenas que levam ao câncer, doenças cardíacas e outros problemas em órgãos vitais.

Os responsáveis corporativos, no entanto, estão distantes dos impactos de suas operações e políticas. Seus chefes, absurdamente bem pagos, comandam a partir de suítes luxuosas e desfrutam de confortos inimagináveis. Pouquíssimas pessoas sabem os nomes, mesmo dos executivos-chefes de empresas mais conhecidas. A letalidade, o roubo, a dominação e o drible da lei são conduzidos de forma impessoal pelos corporativistas, que agora investem somas colossais para se tornarem ainda mais abstratos e distantes – com algoritmos tirânicos de inteligência artificial generativa.

Na semana passada, em Nova York, um homem tornou sua raiva pessoal ao extremo. Por volta das 7 horas da manhã de quinta-feira (5/12), ele escolheu um alvo, em frente a um movimentado hotel no centro de Manhattan. Era Brian Thompson, o diretor executivo da gigante UnitedHealthcare, em quem o homem atirou. O assassino fugiu em uma bicicleta elétrica. A polícia recolheu os cartuchos de bala de sua pistola. Nesses cartuchos estavam escritas as palavras: “negar”, “atrasar” e “depor” [uma referência às práticas normalmente adotadas pelas seguradoras: “deny, delay and defend”, ou “negar, atrasar e defender-se” (no Judiciário) – Nota de Outras Palavras].

À medida que a notícia deste tiroteio fatal espalhou-se pelas redes sociais, uma torrente de comentários irados ou mórbidos inundou a internet. O New York Times relatou alguns, como os seguintes:

“Sou enfermeira de emergência, e fiquei fisicamente doente ao os seguros negarem procedimentos a ver pacientes que estavam morrendo. Simplesmente não consigo sentir simpatia por ele por causa de todos esses pacientes e suas famílias.”

“Sentimentos e franquias para a família”, escreveu um observador sob um vídeo com uma imagem da CNN. “Infelizmente, minhas condolências estão fora da rede.”

Tragicamente, Thompson era, de acordo com um funcionário da empresa, um dos poucos executivos que falava em mudar a cultura da companhia. Mas a cultura corporativa, impregnada até a raiz por desejos infinitos de lucros fáceis e crescentes, é muito difícil de mudar – especialmente quando é tão fácil extrair cada vez mais dinheiro, em mensalidades pagas por consumidores impotentes, que carecem de proteções regulatórias adequadas.

E assim, a explosão nas redes sociais incluiu este comentário típico no TikTok: “Pago US$1.300 por mês por um seguro de saúde com uma franquia de $8.000. ($23.000 por ano). Quando finalmente atingi o valor da franquia, eles negaram meus pedidos. Ele [Brian Thompson] ganhava um milhão de dólares por mês.”

New York Times descreveu um “desabafo angustiante de pacientes e familiares que publicaram histórias horríveis sobre o retenção e as negações de reembolso de seguros.” A realidade dramática continuará a se espalhar com fúria vulcânica, à medida que a mídia receber mais reações do público.

Fica a dúvida sobre qual teria sido a repercussão, caso o episódio tivesse ocorrido quatro meses antes das eleições [norte-americanas] de novembro. O alvoroço teria transformado o discurso evasivo da campanha de Harris, orquestrada pelos consultores políticos democratas ligados a corporações. Teria a candidata dado ouvidos aos alertas e propostas populares do senador Bernie Sanders?