O pecado mortal da omissão; Por Walter Pinto Filho

COMPARTILHE A NOTÍCIA

Nada é mais profundo no homem do que sua capacidade de ferir.” Emil Cioran

A denúncia feita pelo jornalista Ezio Gavazzeni, publicada recentemente na imprensa, é estarrecedora: homens viajavam da Itália às colinas de Sarajevo para atirar em civis como parte de um “safári humano”. Ricos que pagavam para se divertir no cenário do horror. Não é apenas crueldade — é a institucionalização do abismo. Um turismo da morte montado enquanto uma comunidadesitiada implorava por pão e silêncio.

O cerco da cidade já era, por si só, um colapso moral: mulheres correndo como sombras, crianças aprendendo a medir a vida pelo intervalo entre tiros, velhos enterrando filhos às pressas. Agora se suspeita que, entre os franco-atiradores, houvesse estrangeiros seduzidos pela chance de “experimentar” a sensação de matar — viajantes colecionando lembranças mórbidas, canalhas que se deliciavam em abater um indefeso à distância.

O preço dessa infâmia: até seiscentos mil reais por pessoa. O pacote oferecia logística, transporte e discrição. A morte virou artigo de luxo, consumido na certeza de que o mundo não estava olhando. O pior não é a acusação — é que ela não surpreende. A região dos Bálcãs, desde o início, foi vitrine da indiferença internacional.

Os franco-atiradores transformaram a infância em alvo: milhares de crianças caíram não por engano, mas por puro deleite de quem via na mira um brinquedo humano. Mulheres eram abatidas quando tentavam alcançar um pedaço de pão, caçadas com a mesma frieza reservada a animais em fuga. Ali, a maldade deixou de ser conceito — ganhou rotina, método e prazer.

E não foi diferente em outros horrores da década. Em 1994, Ruanda implorava por socorro durante o massacre mais veloz do século. Nos dois casos — Sarajevo e Ruanda — os Estados Unidos foram omissos. Em Ruanda, evitaram pronunciar a palavra “genocídio” para não acionar obrigações legais; em Sarajevo, só agiram com os bombardeios da OTAN em 1995, quando o mal já havia se entranhado demais.

Nos dois genocídios, o ex-presidente dos EUA sabia o suficiente para agir muito antes — e, ainda assim, permaneceu imóvel. Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz comete pecado.” — Tiago 4:17. Anos depois, diante das ruínas de Ruanda, a própria Casa Branca admitiria o que já era evidente: “Falhamos em chamar aquilo pelo nome e em agir com rapidez.” — reconheceu Bill Clinton em Kigali, no ano de 1998.

Agora resta a investigação, tardia, tentando recompor uma verdade há muito soterrada pelo tempo. Talvez se identifique um culpado, talvez nenhum. Mas a denúncia rompe o conforto das narrativas distantes e nos obriga a encarar o que preferimos negar — que existem homens comuns, perfeitamente apresentáveis, capazes de atravessar um conflito apenas para brincar de matar. Monstros que não desaparecem; apenas esperam, pacientemente, a próxima ocasião para extravasar o mal. É a excitação do disparo certeiro, a vaidade de voltar para casa com a história secreta de um assassinato exótico: eis o retrato perturbador que emerge.

E, assim, Sarajevo volta a gritar — não somente pelos mortos, mas pelos vivos que ainda insistem em não ouvi-la.

*Walter Pinto Filho é Promotor de Justiça em Fortaleza, autor dos livros CINEMA – A Lâmina que Corta e O Caso Cesare Battisti – A Confissão do Terrorista. www.filmesparasempre.com.br

COMPARTILHE A NOTÍCIA

PUBLICIDADE

Confira Também

Editorial Focus Poder: Equilíbrio no comando da CPI do Crime Organizado

Engenharia do negócio — os bastidores do mega distrito digital do Ceará

Conselho Nacional das ZPEs aprova cinco data centers de R$ 583 bilhões e consolida Ceará como Green Digital Hub do Atlântico Sul

Governador do Rio elogia “coragem e determinação” de Elmano após ação que matou sete faccionados em Canindé

No Focus Colloquium, a Política das conveniências: entre a força e o cálculo

Powershoring: o Nordeste no centro da nova revolução industrial

André Fernandes reafrima aval de Bolsonaro para aproximação com Ciro Gomes

Lula e Trump: O encontro que parecia impossível

Ciro volta ao PSDB; Tasso dá missão dupla e oposição mostra força e busca cola para justificar as diferenças

Ciro retorna ao ninho tucano: ao lado de Tasso, mas com o PSDB longe de ser o que já foi

TRF de Recife proíbe cobrança de “pedágio” na Vila de Jeri

Dois históricos antibolsonaristas, Ciro e Tasso juntos no PSDB para construir aliança com a direita

MAIS LIDAS DO DIA

Prefeitura de Forquilha vai realizar seu primeiro concurso público

Editora é condenada por mudar pseudônimo de autor do livro, decide STJ

TST mantém dispensa de bancária e afasta alegação de etarismo

Após redução da Petrobras, gasolina tem recuo de 1,92% em Fortaleza

Ceará amplia emissões de gases de efeito estufa em 24% em cinco anos

STF mantém condenações no caso da tentativa de golpe e rejeita recursos da defesa

Atividade econômica recua 0,2% em setembro

Caravana Ceará Um Só encerra jornada 2025 com encontro na Grande Fortaleza

O pecado mortal da omissão; Por Walter Pinto Filho