Sem reler Rubem Braga, o que faço religiosamente pelo menos uma vez por ano, decido-me a escrever uma crônica tratando do sabiá. Sabemos todos, ou pelo menos sabíamos todos, que o mineiro Rubens se fez conhecido como o Sabiá da crônica, pela doçura com que tratava seus temas e por suas odes inesquecíveis traçadas sobre pássaros, pensamentos e pessoas.
O sabiá é um pássaro canoro, começo.
Canoro ou sonoro? Canoro é o que canta de forma melodiosa. Sonoro é o que emite som, independente de quantos decibéis, e isento de preocupações com a harmonia: um jato, um trem, um apito de fábrica. Canoro, portanto, é o sabiá.
Além de canoro, o sabiá é uma ave tipicamente brasileira.
Será que é isso mesmo? Então não existem sabiás nas Américas, na Europa, na exótica Oceania, quarto de despejo da fauna mais diferenciada do planeta? Ao que parece, não existem, embora haja notícias deles – sabiás – em países vizinhos ao Brasil, como Bolívia, Argentina, Uruguai.
A cor do sabiá representa a bandeira brasileira.
Colocação de todo incorreta para a crônica que tento escrever. Da nossa bandeira, é fato que certas espécies de sabiá tem algo de amarelo, que remete ao nosso ouro. Mas não chegou a ser tingido pelo azul dos nossos céus, nem pelo verde restante nas nossas matas. E mesmo possuindo as manchas do branco suspeito da nossa paz, está distante de ser identificado com o lábaro que ostentamos estrelado.
O substantivo sabiá é masculino.
Outro erro aparentemente imperdoável, comprometendo o andamento dessa pobre crônica. Em um dos antigos festivais internacionais da canção, frutos de uma época única, Tom Jobim e Chico Buarque assinaram com o título Sabiá a letra e a música vitoriosas – pelo menos aos olhos do júri. Já para o gosto do público presente ao auditório, não houve aceitação da linha melódica inovadora. As vaias superaram, em muito, os aplausos.
Pode ser que essa recepção hostil a tão bela composição tenha se devido a uma questão de gênero, tópico ainda não questionado ou debatido nos fóruns populares do Universo on line, como acontece hoje. Um trecho da letra dizia: “Vou voltar!/ Sei que ainda vou voltar/ Para o meu lugar/ Foi lá e é ainda lá/ Que eu hei de ouvir/ Cantar uma Sabiá/ Cantar, o meu Sabiá.”
É possível que os ouvintes tenham percebido a dúvida evidente dos compositores quanto ao gênero do sabiá. Ou da sabiá. O que teria sido esclarecido com facilidade, caso tivessem eles em mãos o dicionário Michaellis: o substantivo se enquadra na classificação de “comum de dois”. Estravam, portanto, corretos, Tom e Chico, ao entoar o canto da sabiá. Ou do sabiá.
Os sabiás são aves dóceis, que se habituam à convivência com os humanos.
A frase soa verossímil. Não se tem conhecimento de ataques de sabiás, ao estilo dos corvos e gaivotas hitchcockianos, muito menos de sanguinolentas rinhas de sabiá. Devem viver entre si com a mesma harmonia com a qual nos exibem seus cantos.
Toda essa especulação, porém, ressoa inútil. Frase a frase, analiso o que cheguei a anotar para a suposta e indigente crônica. Nem uma linha a ser aproveitada. Nada que sequer chegue a tocar a fímbria da bainha italiana da calça de Rubem Braga, escritor capaz de descrever um pavão ostentando suas cores, como algo de “um luxo imperial”: “Mas andei lendo livros”, ele diz, pleno de ciência e poesia, “e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.”
Nada tracei que se assemelhasse à sombra de uma sombra do que cantava ele sobre o conde e o passarinho: “Devo confessar preliminarmente que, entre um conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O conde não sabe gorjear nem voar. O passarinho não é industrial, não é conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.”
E é de Rubem Braga que roubo minha despedida, na crônica que não cheguei a escrever hoje: “Adeus. A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.” Para que mais?