O tempo de cada um. Por Angela Barros Leal

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No começo da noite, no meio de uma falha na energia elétrica que atingiu todo o quarteirão, o avô aproveita para contar ao neto e à neta, ambos na faixa dos 10 ou 12 anos, fatos da sua própria infância e adolescência. 

Menino adolescente era feito cão sarnento, ele diz. Podia nem passar por perto de quarto de donzela.

Sem televisão, celulares descarregados, um chuvisco intermitente caindo do lado de fora, as crianças reviram os olhos, o branco dos olhos tremulando no foco de luz proporcionada pela vela decorativa, sobrevivente do Natal, trazida pela mão atenta da avó.

O menino pergunta o que é cão sarnento. A menina interroga sobre a palavra donzela. 

O mundo é outro, diz o avô. Não mais aquele, em que os meninos subiam com agilidade no telhado das casas, indiferentes ao risco de um escorregão, deitavam-se sobre o encontro das duas águas, úmidas pelo sereno, e afastavam as telhas escuras de limo para, dando as costas às estrelas, espiar o quarto de dormir das meninas.

O que é sereno, pergunta o menino. E duas águas, o que é, questiona a menina.

Uma vez, caí do telhado bem em cima de uma pilha da madeira, que era a lenha para o fogão da vizinha, a mãe da donzela, você agora sabe o que é. O cachorro disparou a latir, eu não conseguia pular a cerca que separava as duas casas, e se a própria vizinha não tivesse vindo me socorrer, eu nem ia estar inteiro aqui, contando essa história a vocês.

Os netos riem, imaginando o avô em tamanho pequeno, com a mesma cara de hoje, acuado pelo cão, situação que eles conhecem de vídeos e de games.

O avô tem mais histórias como essa, ou mais atrevidas ainda, que não há de contar a eles tão cedo.

Imaginem uma casa pequena, mais ou menos do tamanho dessa sala aqui, com só um quarto. E nesse quarto, imaginem um entrançado de redes, umas por cima das outras, ocupadas por seis ou oito crianças tentando dormir, antes que a mãe apagasse o lampião alimentado a querosene –, pendurado em um arame por questão de segurança–, e o mundo mergulhasse na escuridão. 

Eles conseguem imaginar. De vez em quando brincam de “acampar” na sala do apartamento, quando estão lá os três primos menores, cada um com seu colchonete, seu travesseiro e seu cobertor, já que o ar condicionado costuma esfriar demais.

E tinha o banheiro, mas era do lado de fora da casa, diz o avô. No quintal.

Os netos não entendem como era possível sair de casa no meio da noite, para usar um banheiro – onde? Perto da piscina do condomínio? Perto da portaria do zelador? Não era perigoso?

Se não quisessem sair, ele concede, podia ser usado o penico, mantido em um canto do quarto.

Os netos riem. Sabem o que é penico, porque viram um youtuber exibir um deles, fingindo usá-lo como se xícara fosse.

O avô nem conta que, no banheiro do quintal, o papel higiênico era o mesmo papel com que as compras no comércio eram embrulhadas. Que a água fria para o banho precisava ser puxada das profundezas da cacimba, e vinha em um balde rangedor, preso a uma corda e uma roldana. Que não havia água corrente nem chuveiro, mas sim uma lata grande, depositada no piso, reaproveitada de produtos vendidos a peso. 

Não perde tempo em dizer que, para o banho, a água nessa lata era recolhida aos poucos, usando uma espécie de vasilha de barro, capaz de quebrar com facilidade, ou em outra lata, de menor tamanho, e só aí derramada sobre o corpo.

Imaginem um banheiro bem simples, diz o avô, escuro e muito úmido, um ambiente perfeito para o aparecimento e para a morada de rãs e sapos, no qual se tomava banho com um olho no sapo, outro na vasilha de barro, que não podia quebrar porque a mãe ia fazer um escândalo.

Os netos retorcem o nariz em nojo. Impossível imaginar um banheiro com sapos! Sem chuveiro! Do lado de fora da casa!

Bons tempos, reflete o avô, fechando os olhos às lembranças, e ao brusco retorno da luz elétrica, recebida com gritos de alegria pelos netos. Algum fragmento dessas histórias há de ficar presente na memória dos dois, ele espera, ainda de olhos fechados, mergulhados no que viveu. Mas – por enquanto – o tempo é o deles.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder 

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