Fui assistir ao filme Nosferatu, de Robert Eggers, no cinema, e não me decepcionei. Sua fotografia, design e estética são impecáveis, aproximando-se da perfeição — uma característica marcante do diretor, também responsável por obras como A Bruxa e O Farol. Contudo, o impacto dessa obra vai muito além de seus aspectos visuais. Baseada no romance Drácula, de Bram Stoker, essa nova adaptação revisita uma narrativa que, apesar de ambientada no passado, ressoa de maneira inquietante com o presente. É uma história que confronta forças opostas: vida e morte, o novo e o antigo, a ciência e o misticismo, a racionalidade e os impulsos mais sombrios da humanidade.
Para compreender a profundidade dessa obra, é indispensável voltar ao Nosferatu original, dirigido por F.W. Murnau em 1922. Este filme, um marco do expressionismo alemão, revolucionou o cinema com sua estética única. Cenários distorcidos, jogos de luz e sombra e ângulos dramáticos criaram um ambiente de tensão e desconforto que capturava as ansiedades de uma Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, mergulhada em crises econômicas e sociais. Essa abordagem estética amplificava o horror, não apenas como uma experiência sobrenatural, mas também como um reflexo das angústias humanas. Mais do que um filme, Nosferatu tornou-se uma metáfora para os medos e instabilidades daquele período.
Em Nosferatu, o vampiro Drácula foi rebatizado como Conde Orlok por questões legais, e seu nome, com suas cinco letras e ligação à especulação imobiliária — central na trama —, carrega uma correspondência histriônica com figuras contemporâneas de poder que, de seus castelos, utilizam o terror para expulsar os mortais de suas terras. Assim como ele, outros emergem de tempos sombrios para drenar as energias de sociedades em transformação. Orlok habita uma região da Europa Oriental, cujos ecos linguisticos me fazem lembrar dos movimentos opressores italiano — presente no Brasil de maneira simbólica e política. Esses movimentos, ontem e hoje, buscam impor sua influência pela repressão e pelo controle, espalhando terror em momentos de necessidade de transformação social.
A narrativa de Stoker, assim como suas adaptações cinematográficas, vai além do horror sobrenatural. O vampiro é uma metáfora poderosa para forças irracionais e opressoras que ameaçam a razão, a ciência e a condição humana. Por exemplo, regimes autoritários modernos frequentemente utilizam fake news para manipular a opinião pública e suprimir a dissidência. Em Nosferatu, a luz do dia, que queima e destrói o monstro, simboliza o triunfo do conhecimento e esclarecimento. Enquanto o vampiro representa a escuridão do atraso e da ignorância, que nos dias de hoje é a manipulação da informação pelas fake news, o amanhecer simboliza a força transformadora da razão, que expulsa as trevas.
Essa luta entre luz e trevas também se manifesta nos temas de sexualidade e repressão, centrais tanto no livro quanto nos filmes. A história reflete as tensões de sua época, particularmente as normas opressivas da era vitoriana, mas continua relevante em um mundo onde movimentos conservadores tentam impor regras arcaicas a sociedades cada vez mais diversas e livres. Nosferatu nos lembra dos retrocessos que vêm sendo impostos em áreas como a liberdade sexual e os direitos individuais, mostrando como forças conservadoras continuam a tentar reprimir as expressões de diversidade e autonomia. As trevas que Orlok carrega consigo não são apenas sobrenaturais, mas também políticas, sociais e culturais, ressurgindo em momentos de crise para tentar sufocar o progresso humano.
O filme de Eggers, ao revisitar essa narrativa clássica, presta uma homenagem visual e narrativa à obra original, ao mesmo tempo que recontextualiza alguns de seus temas para dialogar com questões contemporâneas. A sombra do vampiro, com sua fome insaciável, pode ser vista como uma metáfora para o autoritarismo moderno, que suga as energias de uma sociedade que luta para preservar e ampliar os direitos conquistados. Enquanto isso, a resistência ao progresso segue perpetuando o misticismo e a ignorância como ferramentas de controle. Contudo, a história também nos ensina que essas forças sombrias não são invencíveis. Assim como na ficção de Bram Stoker, é a luz — seja ela a luz do dia ou a luz do conhecimento — que dissipa as trevas. É essa luz que precisamos cultivar em tempos de incerteza.
Hoje, enfrentamos um cenário global que reflete muitos dos elementos presentes na trama de Nosferatu. Assim como Orlok, os “condes” modernos com suas facetas alaranjadas emergem de seus castelos para espalhar o terror, vemos líderes e ideologias que resistem ao progresso, perpetuando o misticismo e a ignorância como ferramentas de controle. No entanto, a história também nos ensina que essas forças sombrias não são invencíveis. Assim como na ficção de Bram Stoker, é a luz — seja ela a luz do dia ou a luz do conhecimento — que dissipa as trevas. É essa luz que precisamos cultivar em tempos de incerteza.
A beleza de Nosferatu, seja na versão de Murnau ou na de Eggers, está em sua capacidade de transcender o horror superficial e atuar como uma alegoria para os desafios de cada época. Hoje, mais do que nunca, a luta contra as trevas do Orlokismo continua, não em castelos góticos ou cidades fictícias, mas nas ruas, nos debates e nas escolhas que fazemos como sociedade.

Western Ontario, no Canadá, e professor visitante da Brown University, nos EUA, e da
Universidade da Antuérpia, na Bélgica. Trabalha com fundamentos de física quântica e física estatística. Atualmente é presidente da FUNCAP.