Outra fábula do sapo. Por Angela Barros Leal

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Eram os restos mortais de um sapo, sem dúvida alguma. Se pouco sei do intrincado mecanismo humano, menos ainda conheço dos animais ditos irracionais, como no caso do sapo morto, trazido para perto dos meus olhos descrentes.

Visto de perto, nem um bicho era, mas sim um volume estreito de pele escura, ressecada, uma espécie de couro esticado, bidimensional, ausentes a carne, os nervos, músculos e tendões, um conjunto pouco menor do que a minha mão, em formato assemelhado ao da rosa dos ventos que coroa os mapas.

Tocando sua superfície, purificada pelo ardor incansável do sol, purgada de qualquer essência de vida pela exposição ao vento e ao calor, ao longo de dias, semanas, quem sabe meses, a aspereza da pele se assemelhava à casca de um coco seco.

Parece um coco seco, é o que digo ao rapaz que trabalhava para desobstruir as calhas entupidas, antes que retornem as chuvas, e que recolheu no topo do telhado os restos mortais do sapo, depositados agora sobre a tampa branca do latão de lixo.

Confira aqui comigo, digo ao rapaz, enquanto nós dois nos posicionamos próximo ao corpo do sapo, compondo humilde versão de conhecida tela de Rembrandt. Estamos no décimo andar do edifício. Olhe em nossa volta, dê um giro de 360 graus: prédios, prédios e mais prédios. Uma muralha de espigões, apertados uns contra os outros. Aqui e ali uma clareira aberta, o espaço de uma casa aguardando sua hora. De onde você acha que esse sapo pode ter vindo.

O rapaz coça a cabeça. Sapo não voa, ele reflete. Não pega elevador, não sobe escada, nem salta dez andares… Sei não.

Tenho minha teoria pronta, que me apresso a apresentar. Nas garras de um gavião, de uma ave de rapina, o sapo teria chegado aqui. Estava ele ocupado em suas missões de sapo, coaxando à beira de uma das nossas lagoas, ou de um dos nossos rios submersos, de curso urbano – o Pajeú, o Maceió – e se colocara, por puro descuido, na mira de um gavião.

Tenho visto gaviões sobrevoando a área, alto, muito alto, planando nas ondas do vento. Um deles, talvez cansado ou ferido, chegou a pousar na jardineira do meu apartamento, movendo o pescoço para a esquerda, para a direita, em duros arrancos, os olhos ávidos, de predador, incrustrados na cabeça dotada de surpreendente nobreza.

Quem sabe um desses gaviões tenha avistado das alturas o sapo indefeso, sem mata que o protegesse, sem verde que o disfarçasse, sem rochas onde fosse capaz de se ocultar, que tenha pressentido, com seu instinto natural, a possibilidade de alimento fácil, e tenha descido dos céus com a velocidade de uma aeronave de guerra, mergulhado em voo bélico rumo à terra, as garras apontando para a frente, fincando no corpo do sapo e, no mesmo forte impulso das asas, tenha ascendido de volta, para as nuvens de onde viera.

Terá se surpreendido, o sapo, morador das águas, familiarizado com o chão, vendo-se carregado, em brusca escalada, para ambiente dele desconhecido? Terá sentido a rápida elevação ao se distanciar de seu terreno, a estranheza de se mover carregado por outro corpo, que não o seu?

Desconfiado, o rapaz escuta a minha versão para o estranho fato de ter encontrado lá em cima o corpo de um sapo. Cheia de sapiência (a ciência do sapo?), enfeito a história para que não seja só mais um crime corriqueiro, motivado pela necessidade: antes de vir parar no telhado, nunca o sapo se vira tão encantado. Nem mesmo nas historinhas infantis, enquanto aguardava o beijo das princesas, tinha ele avistado tamanha beleza.

Preso às garras do gavião, enquanto subia ele vira um mundo de deslumbramento, pois à distância tudo é belo: a extensão do rio onde morava, a largura da praça, o telhado das casas, o topo das árvores, o empilhado dos prédios, vira o recorte do mar de ondas brancas, e quando se retorcera inquieto, para enxergar o mais que havia a ser visto, sentira que a força do vento sobre sua pele de sapo o libertara de seu transportador.

Ainda caindo, antes de bater no telhado, o sapo deve ter pensado, sim, sobre a extraordinária beleza do mundo, digo ao rapaz, enquanto ele pega com dois dedos o corpo do finado anfíbio e o despeja no latão de lixo, junto com os sacos plásticos que entupiam as calhas. Ao se afastar para concluir seu trabalho ele me silencia: Sapo nem pensa.

Lá em cima, ele dispara em jorros e volteios os jatos de água da mangueira, criando arco-íris com a luz do sol, ainda sem acreditar que existe beleza em tudo.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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