Pets e Homens. Por Angela Barros Leal

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Vende-se jornal para pets” – leio na vitrine de uma banca de revista, em movimentada avenida da cidade. Ora, raciocino eu, apesar de surpresa: se existem publicações para crianças, para adultos, para segmentos profissionais, esportivos, culturais, por que não existiriam para pets, sempre encantados com as cores e movimento das páginas?

Estou na dependência de horários alheios, sentada em um banco largo de madeira, sob a marquise de uma farmácia, ocupada apenas em observar o que se passa em volta. Cada vez que a porta de vidro é aberta sinto o ar frio vindo de dentro, aliviando o calor dessa manhã ensolarada de sábado, com um céu de puro azul celeste, despido de nuvens. Parece que tenho todo o tempo do mundo.

Já deve ser próximo ao meio dia, é o que deduzo a partir da observação dos postes, as sombras quase engolidas pela posição extrema do sol, e pelos rostos de ângulos duros, marcados pela luz vertical, dos pedestres cruzando a avenida.

E lá está o anúncio, no canto direito do meu campo de visão: “Vende-se jornal para pets”.

Hoje em dia, quem lê jornal impresso (excetuando, talvez, os supra referidos pets)? Dizem os levantamentos que esse percentual cobre 6 por cento da população brasileira. Ou 29 por cento da população consumidora brasileira, a fatia de público na mira do anunciante. Dizem que a queda na leitura do jornal impresso é inversamente proporcional à ascensão do jornal digital. Que a maioria dos fiéis à leitura do impresso está acima dos 55 anos, configurando-se entre os hábitos da idade. Dizem isso, dizem aquilo, e ninguém diz nada sobre pets.

Uma mulher põe o pé sobre o banco, ao meu lado, em silêncio. Amarra o cadarço desatado do tênis e vai embora em silêncio.

O zelador da farmácia tenta varrer as folhas secas da calçada. Trabalha em vão, contra o vento quente, empenhado em soprar de volta as folhas secas, a poeira, os papéis de embalagem.

No outro lado da rua, um homem se curva pela cintura, abaixando-se na coxia. Lava as mãos e os antebraços em uma poça d´água que pombos sedentos rodeavam, logo à frente do pneu de um carro estacionado. Há muitos dias não chove.

Um cachorrinho vestindo um colete xadrez, incorporando clima junino, cheira e lambe meus sapatos. A dona (ou melhor, a tutora) deixa que ele fique à vontade, e eu também cedo. Um outro, de laçarote rosa na cabeça e trazendo a reboque uma babá uniformizada, se aproxima em confraternização com o primeiro. Talvez sejam alguns dos pets leitores.

No outro lado da rua, o homem continua inclinado, agora lavando o rosto e molhando os cabelos com a poça d´água dos pombos. Desvio os olhos, constrangida, como se ele fizesse algo privado, e leio de novo o anúncio do jornal para pets.

“A ideia foi minha”, infla o peito o dono da banca, Seu Raimundo, menino “saído do meio dos matos”, chegado analfabeto na capital e empregado pelo cidadão que traçou para ele o caminho fora do qual garante não saber fazer mais nada. “O patrão me dizia: quando o freguês pedir uma revista, ou um jornal, vá com ele ver a escolha, e decore o título”. Assim foi aprendendo a ler, título por título, letra por letra.

Por ter gatos em casa, e saber muito bem o custo de um tapete higiênico, e da manutenção de uma caixa de areia para eles, Seu Raimundo passou a usar como alternativa os jornais da véspera. Daí a ideia de anunciar jornais para pets, termo que ele observou ser o mais elegante para designar os quase humanos bichos de estimação.

Uma pilha de jornais velhos se equilibra precariamente ao lado dele. São vendidos por valor pouco abaixo do preço do exemplar do dia, e atendem aos fregueses que moram na muralha de edifícios em volta da banca, responsáveis por uma vasta população de pets.

“Jornal já está servindo pouco, depois dessa história de internet”, ele reclama saudoso, sem precisar de levantamentos ou pesquisas. “Assim pelo menos dá uma utilidade, né?”

Concordo com ele e compro o jornal do dia. Mantenho também meus hábitos. E, quem sabe, alguns deles haverá de contar o que levou até ali, àquela esquina de pets usuários de jornais e de acessórios embelezadores, o ser humano que lava o rosto e molha os cabelos nas poças d´água frequentadas pelos pombos e animais sem dono.

 

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