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Presente de 90 anos. Por Angela Barros Leal

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Eram só duas as irmãs que restavam, da família de sete filhos, nascidos nas décadas de 1920 e 1930. Os outros haviam partido. As mulheres eram todas Marias: Maria Antonieta. Maria Helena. Maria Áurea, e ela, somente Maria, autotransformada em Mary. Ia completar 90 anos naquela semana, em plena saúde, querida pelos sobrinhos, e pelos amigos dos sobrinhos. Era a tia Mary de todos eles.

A outra Maria, que se resumira a Helena, aos 93 anos sobrevivia em Campinas, pousada inerte em cima de uma cama, na casa de uma filha. A passagem do tempo a conduzira de volta à condição de um bebê, sem condições sequer de abrir os olhos.

A mais nova queria repartir a felicidade do aniversário com a irmã, indiferente ao estágio em que ela se encontrasse. Havia aprendido a utilizar o computador e o whatsapp, com a ajuda do qual mantinha-se participante nos grupos da família, e fizera uma chamada de vídeo para a sobrinha.

Coloque a Helena na tela – pedira, pois elaborara um Plano. E lá estava Helena em Campinas, na cama hospitalar em que atravessava dias e meses, a grade encostada na parede, a camisola cor de rosa, os cabelos inteiramente brancos, rosto um mapa de rugas desenhadas pelo Tempo, e por incontáveis sofrimentos. Os olhos, como sempre, fechados para o mundo.

Encoste o celular ao ouvido dela – demandara. A música que as três escutavam agora era “Luar do Sertão”: “Não há, ó gente, ó não, luar como esse do Sertão”, o dedilhado no violão trazendo a canção preferida de ambas, cantada nas serestas e serenatas quando havia galos, noites e quintais, como escrevera Belchior.

Helena ouvia, se é que ouvia, de olhos fechados.

Tia Mary não sabia se alguma recordação se passava por detrás dos olhos da irmã, algum fragmento de lembrança das duas, ainda tão jovens, tão belas, ouvindo “Luar do Sertão”, passando férias na serra de Guaramiranga, na casa chamada Montebelo, onde nascera a mãe delas.

Sábado é meu aniversário – tia Mary dissera ao ouvido da irmã. Estou comemorando 90 anos, acredita?

Para ela mesma era difícil acreditar. Precisava que alguém “do seu tempo” validasse o fato. Seria possível a vida passar tão rápido assim? Um dia desses, ela era uma moça elaborando projetos de futuro, desfilando em Fortaleza um rosto que copiava o de Ingrid Bergman, padrão de beleza da época, escolhendo e rejeitando namorados e noivos, entre os muitos rapazes que sonhavam com ela.

Um dia desses, ela se graduara em Pedagogia, participara de concursos para empregos públicos, aconselhada pelo pai, sendo aprovada em todos eles, optando pelo que traria maior independência financeira, porque não queria depender de homem algum.

Helena, lembra quando? – perguntara. Lembra daquele? – insistira. Helena, lembra disso? Daquilo? – Inútil. As pálpebras de Helena não se erguiam. Prosseguia passageira das nuvens, o corpo preso à Terra, pairando, porém, acima dela.

Ainda havia o derradeiro recurso do Plano, traçado em uma madrugada insone. Coloque de novo o celular perto do ouvido dela – pedira à sobrinha. E recitara em voz alta e pausada: “Helena que não é de Troia/ espelho da mesma joia!” – o trecho que guardara de um poema escrito por um amor de juventude da irmã.

Como tinham rido na época, as duas, e como tinham rido os sete irmãos, divertindo-se da desajeitada manifestação poética do rapaz de fora, que costumava se hospedar em um hotel da cidade, onde ficavam as famílias dos tuberculosos encaminhados a tratamentos no alto da serra.

Envolvido pelo clima saudável de Guaramiranga, seduzido pelos olhos escuros daquela Maria Helena, produzira uma estrofe que a família tratara de destruir entre gargalhadas, em verdadeiro massacre, com as garras incisivas e impiedosas inerentes aos irmãos.

E ao som da rima de Troia com joia, Helena abrira os olhos. Um par de olhos bem abertos para o mundo, do qual há tantos anos se distanciara. E enquanto a sobrinha, admirada, registrava o inesperado sorriso materno, tia Mary levara as mãos ao rosto, e derramara algumas lágrimas, e escancarara o riso, pela alegria de poder ver de novo o rosto da irmã como era antes, com um sorrisinho de lado, a mente reiluminada, ainda que por menos de um minuto, pela lembrança de antigos amores, e da vida entre os irmãos.

Não podia ter ganho presente melhor, nossa querida tia Mary.

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