Nas últimas décadas do século passado, o ambiente de trabalho nas empresas não estava distante do desumano. As relações de trabalho ainda traziam o eco da escravidão. Mandava-se muito, ouvia-se pouco e punia-se com rigor. A Abolição, embora celebrada nos livros, ainda não havia se consumado nas práticas do cotidiano. O trabalhador era tratado como peça substituível, e a dignidade parecia luxo de idealistas.
Foi nesse cenário que decidi romper, à minha maneira, com o que me soava injusto. Nos canteiros de obras do pobre e esquecido Ceará, vi homens exaustos, de olhar apagado e corpo lento. Chamavam-nos de preguiçosos ou malandros, mas o que eu via era apenas fome, e a fome, essa, não tem culpa. Movido por empatia e intuição, resolvi oferecer-lhes um café da manhã simples: pão com manteiga, café e leite. Não ouso falar em milagre, mas o efeito foi imediato. O sol escaldante sorriu. A energia voltou, o ânimo reacendeu, e o trabalho ganhou novo ritmo.
Vieram, naturalmente, as críticas. Fui chamado de comunista, de sonhador ingênuo, de construtor fadado ao fracasso. Mas os fatos falaram por si: a produtividade cresceu, e com ela veio o respeito e o crescimento. Ainda assim, ao meio-dia, quando a fome também me visitava, passava pela fornalha improvisada de pedras e gravetos, de onde subia o aroma do arroz, do feijão e dos pedaços de charque, temperados pelo apetite e pela simplicidade. Ao lado, uma lata de farinha de caroço e um pedaço de rapadura completavam o banquete dos humildes operários. Aquela imagem me marcou profundamente. Pensei: se um café muda tanto, imagine o que pode fazer uma refeição digna.
A ideia, vista como heresia pelos colegas, parecia inviável. Meu bolso não suportava o gasto, mas o coração insistia. Com a ajuda generosa de comerciantes da velha Rua Governador Sampaio, alguns oferecendo descontos, outros doando mantimentos, consegui tornar o sonho possível. Assim nasceram as primeiras refeições de que se tinha notícia em canteiros de obras no Ceará. Foi uma festa. O sorriso voltou aos rostos cansados, o entusiasmo multiplicou-se, e o clima nos canteiros se transformou.
A notícia se espalhou, e logo chegou a Vigilância Sanitária. O poder público mais atrapalha do que ajuda, um dia desses ainda ouvi. Pranchetas em punho, apontaram irregularidades e aplicaram uma multa capaz de me fazer vender o velho Fusca e não ser suficiente para pagá-la. Os operários, indignados, reagiram à moda cearense: uma vaia sonora que ecoou pela terra seca e rachada. . Foi então que, como por encanto, apareceu um “especialista” que resolveu o impasse e tudo se dissipou como se nunca tivesse existido. Coisas de Brasil, que infelizmente ainda resistem no tempo.
Com o passar dos anos, aquela iniciativa modesta ganhou novos contornos. O que nasceu de um gesto humano transformou-se em princípio de dignidade, e quem sabe não ajudou a inspirar políticas que reconheceram o direito à alimentação no trabalho. Hoje, quando a lembrança me traz o cheiro do feijão e do charque nas panelas de barro, sinto que foi ali, naquele improviso solidário, que o pão se tornou digno e o trabalho, um pouco mais humano.
A história da construção civil do Ceará é feita dessas e de tantas outras passagens, que só podem ser contadas por quem as viveu.
Nota: O benefício da alimentação, no Ceará, só veio a ser obrigatória no início dos anos 90 por iniciativa patronal – SINDUSCON-CE. pronunciada por mim, na presidência do ZéMartins Soriano Aderaldo.
