“Não me façam crer à força — a violência é sempre uma confissão de fraqueza.” — Voltaire
Sempre que se discute a existência de Deus, ressurge a velha sentença — quase sempre entoada com reverência: “Se Deus não existe, tudo é permitido.” Atribuída (imprecisamente) a Dostoiévski, essa ideia virou dogma entre os que enxergam na fé a última barreira entre o homem e a barbárie. Trata-se de um raciocínio cômodo — e perigoso.
A convivência civilizada se apoia em leis, pactos morais, tradições seculares — e, sobretudo, no senso de responsabilidade compartilhada. Nenhuma dessas colunas exige fé religiosa como pré-requisito. A ética não pertence à religião. É perfeitamente possível ser bom sem crer — assim como é possível crer e continuar sendo um canalha. Muitos que creem o fazem com dignidade e vivem com decência, sem impor sua fé a ninguém.
A história escancara o que a fé cega é capaz de produzir: cruzadas, fogueiras, perseguições, degolas, atentados, linchamentos. Basta olhar para o passado — ou para o Oriente Médio de hoje. Quando a fé deixa de ser escolha e vira imposição, o altar se transforma em cadafalso. O que se chama “zelo espiritual” é, por vezes, apenas sede de controle. Matar em nome de Deus é a forma mais demoníaca da revelação de um fanático. Hilário, bispo de Poitiers, já advertia: “Uma ignorância total de Deus é melhor do que uma fé equivocada.”
Fanáticos, porém, odeiam o caminho. Querem um reduto de adoradores. Desprezam o cético, hostilizam o diferente e se sentem escolhidos. Mas, como sempre digo: fuja do fanático — ele se diz escolhido, mas não passa de um órfão da razão.
Nietzsche escreveu, com desdém contra a chantagem teológica: “Prometer o céu a uns e o inferno a outros” — eis a linguagem do medo, não da verdade. O filósofo não atacava a espiritualidade, mas o uso da fé como freio ao pensamento. Em nome da convivência, uma verdade se impõe: ninguém é obrigado a amar o próximo — mas o respeito é irrenunciável. E o respeito começa onde termina a imposição.
Países como Noruega, Suécia e Dinamarca — com população majoritariamente descrente ou de religiosidade branda — são seculares, livres e apresentam altos índices de desenvolvimento humano. Vivem em relativa paz, com ordem social e baixíssimos níveis de criminalidade. Provam, na prática, que a moralidade não depende do altar — mas da maturidade, do discernimento e da responsabilidade. Isso não torna a fé inútil, mas deixa claro: ela não é o único antídoto contra o caos.
Quando a fé é livre, a lucidez respira. Quando é imposta, sufoca.
A escolha é clara: ou caminhamos como pensadores racionais — com luz e liberdade — ou acorrentados por medos alheios.
