“Deixe que eu guardo” – estende as mãos o primo do marido da moça, e ela entrega a ele, pela entrada de serviço do apartamento dela, partes de um encanamento de cobre recém substituído por equipamento mais novo. O fato de estarem os canos roídos pela maresia não perturba a boa vontade do primo do marido.
“Deixe que eu guardo” – é o que ele repete, quando ela informa que trocou os pneus do carro, e que vai se desfazer dos pneus velhos. Ou que substituiu a moldura de alumínio de uma janela por uma cortina de vidro, e que não necessita da antiga armação.
A aceitação automática por parte dele não acontece apenas com os objetos pertencentes a ela. “Deixe que eu guardo” – afirma ele, incansavelmente, a qualquer membro da família que não queira mais uma cadeira com três pernas, um bidê de louça datado de décadas, um gaveteiro desprovido de duas gavetas, um varal de roupa despencado, um objeto avulso que tenha cumprido sua função nas casas.
Um dia desses ela resolveu visitar o primo do marido. Ligou antes, avisando que iria – pois é uma moça bem educada, em nada invasiva –, dando tempo a ele para deixar a casa em ordem: solteirão, moço velho, como se dizia antes, seria justificado um certo desleixo dele na manutenção do lar.
O primo abriu em alguns centímetros a porta de entrada. “O que ele abriu não era mais do que um palmo” – ela me conta de olhos arregalados. Entrevendo metade do rosto do dono da casa pela fresta aberta na porta, ela ficou na dúvida: talvez ele não estivesse ainda pronto para recebê-la, e precisava que ela esperasse alguns minutos do lado de fora; talvez temesse a entrada de algum estranho, avançando com más intenções de sala a dentro.
Fato é que o palmo aberto na porta não passou disso. Ela esgueirou-se para dentro, enquanto ele recuava de costas mesmo, visto não haver espaço para manobras corporais maiores. Um tempo atrás, três ou quatro anos antes, ela e o marido haviam visitado a casa. Verdade que já havia um certo acúmulo de objetos, aqui e acolá, porém nada que se comparasse com o que ela via agora.
A sala se transformara em um depósito de coisas imprestáveis. Em um museu de inutilidades. Em um cemitério indiscriminado de peças, partes e produtos. Os olhos dela realizaram uma não tão discreta vistoria, em sentido horário, à volta daquele sombrio bazar bizantino, no qual sequer o sol conseguia entrar devido à grade de uma cama, encostada na janela principal.
Viu uma pilha de pneus murchos (entre os quais, muito provavelmente, os que haviam sido doados por ela); meia dúzia de para-choques de veículos, encimando uma torre de jornais amarelados; uma poltrona soterrada por um motor de motocicleta; mesinhas em vários estágios de deterioração, encaixadas de ponta cabeça; dezenas de caixas de papelão colapsadas para ganhar espaço ascendente rumo ao teto, e Deus sabe mais o quê.
Não havia um único móvel em condições de uso pelas visitas, situação que, aparentemente, não representava prioridade para o visitado. Aflita, ela pediu um copo d´água e o acompanhou até a cozinha, seguindo os passos dele pela trilha aberta entre os dois aposentos, margeados pela dupla montanha de objetos indefinidos: um desfiladeiro de coisas sólidas, contundentes, sob o risco de desabamentos.
Havia uma segunda trilha similar aberta entre a sala e o interior da casa. Para lá não foram, ela já de olho na porta da frente para uma saída estratégica, manobrando o corpo para retroceder. Depois de afastar uma infinidade de garrafas vazias, potes de vidro e embalagens de plástico, e de remover volumes variados, latas e caixas, abertas e fechadas, ele abriu o que foi possível abrir da porta da geladeira e encheu de água um copo que servira para guardar geleia de mocotó.
A visão rápida do interior da geladeira apressou o desejo dela de ir embora. Fingiu receber uma chamada urgente no celular, depositou o copo sobre uma lista telefônica de 1993, e não se demorou nem mais um minuto.
Despediram-se na fresta aberta da porta da frente, por onde ela escapuliu com o coração disparado. Mais tarde, em casa, sentada na mesa da cozinha, ela ia comentar (para os ouvidos surdos do marido) o seu assombro por ter visto o que jamais esperara ver: um homem a ser sepultado vivo.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.