Síndrome de Eva. Por Angela Barros Leal

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Hoje constatei que perdi uma amiga. Não que tenha perdido daquela forma definitiva e final, que só a morte proporciona, sem a mínima possibilidade de retorno, mas digo que perdi no sentido de quem se vê de mãos vazias, procurando o que sabe ter, sem saber onde colocou.

Terá ela escorregado entre a junção das lajotas do piso, onde uma vez encontrei um alfinete dourado e uma pérola falsa? Terá, por acaso, caído por trás das estantes, repousando enrodilhada entre folhas secas e bolas de pelo de gato? Terá ficado guardada no fundo de uma bolsa de festa, em companhia de um lencinho, de um espelho e de muitas lembranças?

O fato é que perdi essa amiga, há meses sem estabelecer contato, e não sei a que atribuir a perda: se a descaso meu, retardando a aproximação, ou se às intermináveis ocupações dela, erguendo barreiras. Um ataque brusco da Síndrome de Eva, pela qual as mulheres tendem a assumir a culpa de tudo, me conduz à primeira opção. O que me faz bater no peito imaginando alguma palavra mal colocada, uma opinião um pouco mais incisiva, um momento de limitada solidariedade.

Repasso as últimas vezes em que nos encontramos, há tanto tempo, e encontro cinco milhões de faltas da minha parte, um vasto catálogo de ações e omissões. Se parecem, a meus olhos eternamente autocríticos, capazes de provocar cataclismos naturais e batalhas milenares, que estragos não teriam sido capazes de fazer para estremecer uma simples amizade.

Tento me conceder o benefício da dúvida. Antecipo as justificativas que ela me dará para seu distanciamento, que com certeza virão muito em breve, detalhadas em alguma ligação respondida, em mensagem digital abreviadamente redigida, ou mesmo em uma carta, como as que costumávamos escrever no passado, as ingênuas palavras de saudação (“Como vai você, tudo bem? Por aqui tudo bem.”), e as desimportantes notícias, embrulhadas em envelopes pesados de selos.

Nessa reaproximação tão aguardada, ela me dirá que estava todo esse tempo em longa viagem, cento e tantos dias entre o céu e o mar, distante do zumbido comunicativo dos satélites, sem bússolas, sextantes, remos ou astrolábios, carregada indefesa pelas correntes marítimas, de uma ilha deserta a outra, inteiramente impossibilitada de manter contato com quem quer que fosse.

Quem sabe, dirá ela que se encontrava escalando montanhas no Tibete, lutando para respirar o oxigênio escasso, arrastando-se entre cordilheiras geladas e o hálito morno dos iaques de planaltos tibetanos, esquecida de tudo que não fosse a batalha pela sobrevivência diária.

Ou dirá ter sido abduzida por seres extraterrenos, e conduzida aos luminosos laboratórios dessas inteligências superiores, tentando enviar desesperadas mensagens telepáticas a quem pudesse socorrê-la, culpando-me talvez pela indiferença e ignorância.

Situações outras poderiam também ter ocorrido, como explicará minha amiga no contato que, porventura, venha a estabelecer. Terá se deixado ficar cega de amores por um estrangeiro, loucamente ciumento, que a mantivera em cárcere privado, em remoto enclave de um desses países que parecem ter, como esporte nacional, a agressividade mútua.

Terá sido ela a paciente zero de uma nova vertente de vírus causadores de comprometimento da memória e dos demais sentidos, provocando perda de movimento das articulações dos dedos e mãos. Poderá, quem sabe, ter sido acometida por um estado de inesperada falência financeira, consumindo em pão e água os derradeiros recursos disponíveis, restando impossível a compra de créditos no telefone celular ou o pagamento do provedor da internet.

Terá enfrentado em vão o advento de uma catástrofe natural, uma enchente, um tsunami, incêndio, que poderão ter reduzido a polpa ou a cinzas suas cadernetas de endereços. Ou talvez tenha decidido aguardar o Quarto Milênio no recolhimento e na solidão, afastando-se de tudo que viesse a dificultar seu aprimoramento espiritual.

Não sei. Seja qual for a razão, o fato é que perdi minha amiga. Mas o fato também é que, a qualquer momento em que ela queira dar mostras de sua existência, e me auxiliar na luta contra a suprarreferida Síndrome de Eva, saiba que continua sendo muito bem-vinda, como sempre devem ser os verdadeiros amigos.

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