
A pergunta é antiga, quase um sussurro filosófico que atravessa os tempos: somos o que pensamos ? Há quem responda rápido, sem titubear, como quem quer mostrar que domina a si mesmo. “Claro que sim. O pensamento é tudo.” Outros já franzem a testa, coçam o queixo, desconfiam. Sentem que há algo que não fecha bem nessa ideia. E estão certos.
Entre o desejo e a razão, o homem moderno gosta de se ver como racional, dono de si, senhor dos próprios pensamentos. Acredita que pensa, logo existe, como ensinou Descartes. Mas logo esbarra na própria contradição: pensa em ser firme e cede. Pensa em se calar e explode. Pensa em seguir um caminho e tropeça no desejo. É que o pensamento, embora nobre, nem sempre governa. Há em nós outra força que escapa, atravessa, contorna. Não se deixa domar tão facilmente.
Para o homem do povo, aquele que acorda cedo, pega ônibus cheio, lida com o salário curto e o tempo apertado, essa pergunta não vem em tom de filosofia, mas de vida real. Ele não se pergunta se é o que pensa, mas vive as consequências do que sente, do que pressente, do que acredita sem saber explicar. Ele diz que tem “um pressentimento ruim” ou que “tem coisa que a cabeça da gente não entende, mas o coração sente”. E nessa sabedoria simples, já nos mostra que não somos apenas o que pensamos.
Pensamos, mas somos atravessados. Na prática, a vida nos ensina que pensamos muitas coisas que não fazemos. E fazemos muitas coisas que nunca pensamos. O pensamento, por vezes, é apenas a fachada do que nos move. Há decisões que parecem racionais, mas foram tomadas lá no fundo, no impulso, na emoção, no desejo ou no medo. Somos atravessados por vozes que nos habitam, por histórias que nos marcam, por silêncios que não ousamos quebrar.
Nem tudo cabe no pensamento. Há dores que não se explicam, há angústias que não se traduzem. O sujeito pode pensar que está bem e, ainda assim, sentir-se vazio. Pode se convencer de que perdoou, mas o ressentimento continua roendo por dentro. Pode declarar amor com todas as palavras, mas algo em sua presença desmente aquilo. Porque o que somos escapa ao que dizemos, e até ao que pensamos dizer.
Dizer que somos o que pensamos pode ser perigoso. Pode fazer o sujeito acreditar que basta “pensar positivo” para que a vida se resolva. Pode levá-lo a ignorar sua história, seu sofrimento, seu desejo. Pior: pode fazer com que ele se culpe quando as coisas dão errado, como se tudo estivesse sob o domínio de sua mente. Mas não está. Nem sempre pensamos com clareza, nem sempre pensamos com liberdade. Pensamos com o que nos foi dado, com o que nos foi negado, com o que herdamos sem saber.
Descobrir-se, então, não é apenas pensar. É escutar o que se pensa, sim, mas também o que se cala, o que se repete, o que aparece nos sonhos, nos atos falhos, nos tropeços da linguagem. Descobrir-se é atravessar o próprio ruído, não para ter controle, mas para ter consciência. Porque, em última instância, não somos só o que pensamos. Somos também o que sentimos, o que desejamos, o que nos falta, o que nos ultrapassa.
Pensar é importante, mas não é tudo. No fim das contas, o pensamento é uma ferramenta valiosa, mas limitada. Ele nos ajuda a organizar, nomear, refletir. Mas não explica tudo. E talvez nem deva. Há algo de bonito em reconhecer que o mistério que somos não se encerra na cabeça. Há corpo, há história, há silêncio, há sonho. Há vida para além daquilo que conseguimos pensar.
Paz e Bem !
