
No meio da noite me vem de volta a pergunta de uma neta: como era mesmo que se chamavam os três Reis Magos. Vasculho os arcanos fichários da memória, retornando aos tempos do Catecismo, e recordo que a listagem vinha numa cantilena fácil de decorar, em uma rima esquecida: Fulano de Tal, Belchior e Baltazar. Vejo claramente a silhueta das três figuras, recortadas em incontáveis cartões natalinos: Fulano puxando a fila, seguido pelos outros dois, mas nenhum malabarismo mental faz vir à tona o nome dele.
Não só me falta o nome, como outras dúvidas que estavam adormecidas erguem as cabeças, espicham os braços ossudos e abrem suas asas nervuradas no meio da noite. Com os olhos no teto penso que Reis, assim como candidatos preferenciais a cargos políticos, não viajam sozinhos. Que espécie de Reis seriam esses três solitários viajantes, em tão minúscula caravana, sem a companhia de nobres, de súditos e servos? Quem lhes seguraria o manto ou firmaria o estribo para a acomodação sobre o dorso ondulante dos camelos? Quem garantiria a segurança de suas preciosas coroas, na longa navegação por mares de areia? Quem caminharia adiante deles para anunciar sua imperial passagem pelas paragens do caminho?
São quatro horas da manhã, e recordo que um dos Reis era negro. Mas qual deles? Baltazar me parece o mais provável, pelo som profundo do nome, um nome de homem sério e sábio, um nome para alegrar os arautos, alongando as vogais com as mãos em concha em volta da boca. Qual o reino de Baltazar? Teria seu reinado na Etiópia? Aliás, já existiria Etiópia? Ocuparia ele um trono modesto no imenso Reino de Judá?
Qual o império de Belchior? E a quem haviam incumbido de zelar por suas Cortes enquanto cruzavam mundo, bilaquianamente, a ouvir estrelas e a segui-las sobre as corcovas das dunas? Se eram magos, qual magia praticavam? Ou não seriam magos, e sim sábios – wise men, na tradução dos norte-americanos? Que encantos e milagres produziam? Que ciências detinham? E afinal, como se chamava o terceiro Rei Mago?
Cachorros latem, um alarme de carro dispara. Sei que levavam como presentes ouro, incenso e mirra. Mas a que serviria para um recém-nascido o incenso, palavra que traz ao ar friorento da madrugada um cheiro úmido de catedrais, o eco de órgãos, de corais gregorianos ressoando em paredes de pedra? E mirra, então?
A dúvida sobre o que seria a mirra espanta de vez o sono. O valor do ouro atravessou milênios, o incenso mantém seu grau de reconhecimento, mas os poderes da mirra perderam-se de vez numa dessas esquinas do tempo.
Descubro uma das vantagens de estar aposentada. Posso levantar no meio da noite, impor as mãos sobre o teclado e invocar poderes infalíveis, sem me preocupar com as olheiras matinais. Como um oráculo de resposta sempre pronta a tela me informa que os Reis Magos são citados em um só Evangelho – o de Mateus, e sequer há certeza de que seriam de fato três.
Belchior, cujo nome tão fácil relembro, poderia ser Melchior, rei da Pérsia. Baltazar era de fato o negro, rei da Arábia. E o terceiro, aquele que me fugira da memória, chamava-se Gaspar, e seu reinado recaia sobre a Índia. Eram magos pelo conhecimento que dispunham em astrologia e astronomia, daí a obediência à trilha da estrela.
Acesso o arquivo das dádivas informativas na internet: com ouro, o precioso metal, se presenteava um Rei; o incenso era dedicado a pregadores religiosos; e a olvidada mirra – resina extraída do caule de um arbusto das regiões desérticas da África e Oriente Médio – era usada para preparar medicamentos que serviam aos vivos e para as elaboradas cerimônias de embalsamamento e mumificação dos mortos.
O dia vai nascer e as interrogações se sucedem. O que a jovem mãe Maria terá feito com os valiosos presentes? Onde os teria guardado, em tão pobre cenário de areia, palha e pelos dos animais, na periferia de uma cidade repleta de estranhos? Quanto tempo permaneceram os Reis na manjedoura? Em que língua se faziam entender entre si, e com os demais? Teriam voltado talvez a se encontrar, para trocar reminiscências da viagem? Foram eles os pioneiros do aquecimento do comércio, criando a tradição dos presentes natalinos?
E o pai, José, teria recebido os nobres com as devidas mesuras ou sem esconder a pressa de vê-los retroceder em seus caminhos, podendo assim dedicar-se à mãe, ao filho e ao divino Espírito Santo? Apenas três Reis. E uma noite de tantas dúvidas.
