Gratidão ao amigo R.V., que me deu essa história.
O menino era exatamente o filho do meio. Não no sentido de hoje, de um para lá, um para cá, mas na distribuição de antigamente: cinco irmãos mais velhos para cá, e cinco mais novos para lá. Assim, era ele o do meio, entre os 11 filhos do casal. Desse posto mediano é que via saírem de casa, nos dias de semana, rumo à escola, todos os irmãos e irmãs que o precediam. E ele ficava, o menino, com a mãe, os cinco irmãos mais jovens, e um peito pesado de inveja.
Estava com 7 anos de idade. Desconhecia a inveja má, aquela inconfessada, na qual se quer que os outros não tenham.
Invejava, sim, não ser um dos irmãos que, em cada ano letivo, cumpriam a mesma rotina festiva de tomar o banho frio matinal (com sabão Pavão), vestir a farda da escola (engomada pela mãe, com o ferro em brasa), guardar dentro das pastas o material de estudo (com aquele cheiro de livro novo, que ele jamais esqueceria), calçar os sapatos sofridamente comprados (ou transferidos dos pés de um filho para os pés de outro, consertados antes pelo sapateiro da cidadezinha à beira-mar – sapateiro esse que acumulava sua função com a de tocador de tuba na Banda municipal), e se despedirem a caminho do Aprendizado.
A mãe determinara que ele só se alfabetizaria aos 8 anos, naqueles tempos em que o orçamento familiar era curto, e em que o Tempo não passava nunca. O menino chorava em desconsolo, por não fazer parte da “elite estudantil da família”, como reconhece hoje.
Estava, pois, com 7 anos, quando uma tia de presença altiva, que iria falecer aos 102 anos, testemunhou mais uma vez a chorosa cena semestral. Não seja ignorante – ela criticou a cunhada. O menino chorando para estudar, e você não deixa que ele vá para a escola.
Sem pedir licença, a tia tomou o menino pela mão e seguiram porta a fora, rindo ambos ao verem as lágrimas no rosto dele secando velozes, ao sopro dos ventos norte, leste e oeste, até alcançarem a mercearia do Seu Neném, o templo onde reluzia uma multitude de artigos variados, fonte de deslumbramentos aos olhos das crianças locais.
Assim iria começar a vida de estudante do menino, vendo encantado o material escolar ser retirado das prateleiras, atrás do balcão, e empilhado sobre seus braços receptivos: a cartilha do ABC, a tabuada, um caderno, o lápis de escrever, a borracha, o apontador. Cada item trazia mais leveza à sua mente de criança –, e ao bolso do pai, sabia sem remorso, fazendo ouvidos de mercador à voz da tia a dar ordens a Seu Neném: A conta é no nome do pai dele.
De lá, seguiram até a casa de Dona Inácia, mestra de aulas particulares, mulher de seus 60 anos, quando tal idade significava avançada velhice. A professora abriu um sorriso ao recebê-los, escancarando a porta da casa onde morava e ensinava. Tinha os cabelos muito pretos, respingados de fios brancos, mancava de uma perna, e repartia a casa com um irmão.
A cidade toda conhecia a história do irmão de Dona Inácia, mantido preso em um quarto. A grade entre o quarto e a sala o prendia e protegia. Evitava que saísse ensandecido pelas ruas, e garantia também a segurança de Dona Inácia e seus alunos, que o temiam à distância. A sala de aula é só minha – gabava-se o menino em casa, aos ouvidos dos irmãos – e eu ainda tenho a coragem de estudar olhando o doido de perto! Glória duvidosa, porém de grande importância em um mundo onde a ferocidade valia para a sobrevivência.
No primeiro dia de aula, a mestra mostrara ao menino o homem enjaulado. Esse homem é meu irmão – ela dissera, sem medir palavras – e é doido.
Olharam-se ambos na fronteira entre a sala e o quarto, através da grade: do lado de fora a criança, vestindo camiseta de malha e uma calça comprida desajeitada, herdada de um dos irmãos mais velhos, material de estudo sob o braço; do lado de dentro, o homem inquieto, de olhos acesos, pele morena, cabeleira desgrenhada e barba espessa.
A regra número um, comandara a professora, era não chegar perto da grade.
Assim fez o menino. Começava a aprender suas lições, além do português, da matemática, das ciências, da história e da geografia: ter limites era coisa importante. Jamais ultrapassou a fronteira delimitada pela mestra. Soube respeitar as regras do jogo, e se ali tinha início seu aprendizado formal, iniciava-se igualmente nas leis não escritas da vida.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder