Verdades temporárias. Por Angela Barros Leal

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Tenho fé em Deus que um dia vão dizer que exercício faz mal! – é o que escuto resmungar a minha vizinha de esteira, na academia, onde caminhamos há mais de 10 minutos sem sair do lugar. Onde já se viu, dizer que isso faz bem! – ela prossegue em seu suado protesto, ouvido não apenas por mim, mas pela personal que acompanha os exercícios dela.

Concordo integralmente com a vizinha. Porém, como sei das reações contrárias, prefiro permanecer com minhas opiniões no reino intocável do pensamento, suando na esteira, observando a personal se aproximar dela em marcha acelerada, ouvidos atentos, sacar da cintura o celular, e acessar meia dúzias de fotos e vídeos mostrando idosos centenários expiando pecados em eventos de musculação, arrastando em maratonas as pernas endurecidas, ou realizando proezas impensáveis para o comum dos mortais.

A vizinha e a personal discutem, cada uma com sua razão. Eu me faço dona de ouvidos moucos, e admiro a vagareza com que os minutos passam no painel iluminado da minha esteira, indicando a velocidade de 3,1 quilômetros por hora.

Como é que pode ser bom, forçar meus joelhos desse jeito? – argumenta a vizinha ofegante, ao que a personal responde com um fluxo poderoso de percentuais e estatísticas, demonstrando por A+B que as pessoas que caminham, que desenvolvem músculos, que desempenham algum tipo de atividade física vivem mais, e vivem melhor. Parece que ela e a minha médica leram o mesmo livro, e imagino ambas lado a lado, passando as páginas em meio a manobras atléticas. 

Estou ali há pouco tempo, induzida pelos senhores da Medicina, que não consideram suficiente o alongamento do corpo possibilitado pelo Pilates, nem o exercício aeróbico da caminhada, impondo como vital impor sobre meus ossos rangentes esse terceiro elemento, a musculação, transformando minha semana em uma prolongada canseira.

A mesma senhora queixosa senta ao meu lado outra vez, agora na máquina de remo, uma curiosa engenhoca que reproduz os movimentos de um remador vencendo as águas em um barco inexistente, e prossegue seu lamento, indiferente às imagens exibidas pela personal, que revira os olhos pelas costas dela, contando com minha falsa cumplicidade. 

Comento com a personal, tentando mudar de assunto: me parece que todas as máquinas disponíveis na academia reproduzem esforços que nós – tanto os mais idosos, como os garotões e garotonas sarados – muito bem poderíamos fazer em casa, ou em alguma atividade não sedentária, e que vergonhosamente não fazemos: levantar sacolas do chão, e não esperar que alguma alma caridosa o faça; andar de um ponto a outro para buscar um copo d´água, e não pedir a alguém que o traga; realizar abdominais na limpeza da casa, ou na lavagem da roupa; subir escadas e desprezar elevadores; usar bicicleta ou simplesmente caminhar nas ruas, esquecendo as quatro rodas.

Não é assim que funciona, ela responde, justificando o fato com um vocabulário que ainda não domino, de cargas e repetições e músculos específicos, semi-ofendida pela comparação feita por alguém não familiarizado com  a linguagem de bíceps e tríceps, supinado e pronado, endomorfo e ectomorfo e mesomorfo e que tais.

Encabulada, remo com todas as minhas forças na máquina, como o empenho de quem cruza o Canal da Mancha, como quem atravessa o estreito de Cuba a Miam, como se não houvesse uma segunda margem aonde aportar. Remo veloz, e em silêncio doloso, meditando sobre a inevitável transmutação das artes médicas, promovida pelo avançar da Ciência, por novas descobertas e revelações, por fatos e acontecimentos reestudados, capazes de alterar suas tábuas da Lei. 

O ovo! – eu penso entre remadas vigorosas, o ovo, que por tanto tempo foi vilão! O ovo, que contrabandeava no dourado de sua gema os riscos do colesterol, o ovo foi absolvido. O chocolate! – eu não esqueço, o chocolate que se viu por longo tempo indiciado por crimes indesejados, e se encontra hoje perdoado, declarado inocente. A margarina! – a margarina, que de substituta sadia da manteiga-vilã, foi por último revelada como a verdadeira criminosa! Isso sem falar nos óleos vegetais, apressadamente substituídos pela banha do porco! – autorizada a se fazer presente nas mesas!

Sentada na torturante máquina destinada a fortalecer os músculos das pernas, cujos efeitos sentirei amanhã, nas frustradas tentativas de levantar da cama, mais do que nunca concordo com a queixosa vizinha. Pode ser que jamais aconteça, é claro, mas não é impossível, também, sonhar com o dia em que estudos e pesquisas nos tragam novidades capazes de valorizar o desempenho das atividades domésticas, ou de minimizar os exercícios físicos, reposicionando tudo sob nova ótica no catálogo das verdades temporárias da qual é feita a Medicina.

 

 

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