O tempo em camadas. Por Angela Barros Leal

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O que existia aqui antes, no endereço onde resido, antes de ser um edifício de apartamentos? É o que me pergunto assim, meio à toa, os olhos ultrapassando minha janela, meio perdida em uma paisagem tão habitual de telhados, varandas, outras janelas. O que haveria aqui, antes de serem erguidas as colunas de cimento e ferro, de cal e afeto que sustentam o meu lar? Como seria esse terreno sobre o qual caminho, trabalho e vivo, muitos pisos acima do chão?

O tempo me sobra. Por isso, de quando em vez algumas questões sem importância, como essa, surgem pulsantes, buliçosas, demandando respostas.

Uma casa, talvez, existisse aqui, é o que primeiro arrisco. Uma residência familiar, de costas para o mar, alicerces plantados na areia branca – quase uma areia de praia, como observei de perto, no dia em que extraíram do canteiro, na beira da calçada, uma ossuda árvore morta com minúsculas conchas entrançadas em suas raízes.

A tirar pelo que havia no terreno da frente – que cheguei a conhecer desocupado do prédio de vinte andares hoje esparramado em toda a área –, poderia ter sido uma casa alpendrada, com jarrinhos de avenca, o rendado das folhas bailando nas paredes no final da tarde, uma casa decorada por samambaias pendentes das vigas do telhado, abraçada por incontroláveis trepadeiras, enfeitada com espadas-de-são-jorge, uma casca vazia de ovo em cada ponta das palmas.

Poderia ter sido a casa de uma família grande, dando uso a seus extensos quintais, cercada de mangueiras, cajueiros, pés de laranja-da-terra de insuportável azedume, rodeada pelo tronco malhado das goiabeiras, pelos pés de pitomba ou pelos ramos baixos das pitangas. Crianças brincariam à sua volta: pega-pega, esconde-esconde, cabra-cega, bola, pião. Um piano talvez ali ressoasse, nas tardes de domingo, quem sabe.

Ou, bem antes dessa casa, quem sabe não teria sido erguida aqui uma moradia de pescador, estrutura indefesa sustentada por quatro vigas de madeira crua, paredes de taipa, teto de palha, permeável às tempestades de abril. Teria, a moradia, uma rede de pesca permanentemente estendida entre dois coqueiros, as malhas largas deixando passar o vento e vazar o sol, embora seguras para colher o pescado do qual viria almoço e janta da família.

Quem sabe seria uma casa feliz em sua simplicidade, de onde uma mulher com um bebê ao colo, um no ventre, dois ou três correndo em volta dela, descortinaria a visão extensa de seus quatro pontos cardeais: terra, céu, mar – e a vela da jangada a trazer de volta sua razão de viver, no desempenho do papel que cabia às mulheres.

E, antes ainda. Muito, muito antes, o que teria se passado aqui, nesse terreno que é meu endereço e no qual sou castelã.

Quem sabe fosse uma duna mais elevada, não espalhadas ainda suas areias, uma duna pouco diferenciada da interminável sucessão delas. Talvez caminhasse sobre ela um grupo de estrangeiros, recortados contra um horizonte azul. Seriam embarcadiços, marinheiros, oficiais do Rei, em busca de uma fonte de água, do acolhimento de uma sombra, de um lugar onde fosse possível não perder de vista as velas das naus nas quais vieram, nem o contorno do Mocoripe, igualzinho ao que estava traçado nos mapas.

Trariam armas à cinta, todos eles. Conheciam a fama hostil dos nativos do lugar. A lâmina de uma espada, o botão de uma jaqueta, talvez reluzissem ao sol. Um deles, mais jovem, poderia ter deitado sobre um monte pequeno de areia, saudoso da terra firme. Os mais experientes, penso que teriam pressa em partir. Nenhum interesse em se demorar nesse mundo arenoso, de perigos encobertos, atendidas suas primeiras necessidades de abastecimento e demarcação de conquista.

Não sei se traziam informações quanto à possibilidade das minas de prata, ambicionadas pelo Rei, escondidas no recorte das serras avistadas ao Sul. Os mais graduados oficiais deveriam saber, medindo com os olhos a distância que delas os separava. Acredito que tenham retornado às suas esquadras com alívio.

E antes deles, o que existiria onde hoje moro, empoleirada nas alturas, a pensar no passar do tempo?

Antes de nós, o granito em estado puro, o cristalino que embasa esse chão avesso a raízes e permanência. Dizem também que pode ter sido, um dia, o fundo de um mar imenso, avançando 600 quilômetros de terra a dentro, transformando em fósseis os primeiros animais da Criação, mas nada disso eu sei com certeza.

E jamais saberemos ao certo sobre as secretas camadas do Tempo, dentro das quais mergulho em ociosa reconstrução de mundos possíveis, para confirmar a transitoriedade da nossa passagem sobre a Terra.

 

Angela Barros Leal é jornalista e escritora

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