
Por ser negro (eles lá diriam: “afrodescendente”), com a carga simbólica evidente de sua eleição, a vitória de Barak Obama nos EUA despertou esperanças exageradas no parto de um paradoxo, o “imperialismo com empatia”. A realidade mostrou-se mais modesta. Seus esforços em dar uma resposta mínima para aquelas expectativas obtiveram êxitos muito aquém do que os símbolos de sua escolha portavam. Normal. Um presidente pode menos do que a lenda conta.
Agora, à medida que a invasão da Rússia na Ucrânia se consolida, a superficialidade sentimental da abordagem inicial da mídia vai cedendo espaço para uma leitura mais objetiva e plural sobre a gênese da crise. Chegada a hora de compartilhar responsabilidades, o nome de Obama volta a ser lembrado mais do que ele gostaria: foi seu governo que, contra reiteradas advertências até de republicanos conservadores, fomentou as causas originais dessa crise.
Em março de 2014 (ano em que Vladimir Putin começou a se preparar para esta guerra), um experiente quadro da política externa dos EUA, cujo legado é História, publicou um artigo no Whashington Post. Nele, Henry Kissinger, um oráculo da elite republicana, já advertia Obama de que à Ucrânia se deveria reservar um papel singular, como “elo de ligação, um espaço de convergência” entre a União Europeia e a Rússia.
Kissinger vaticinava que a insistência em atrair aquele país para a OTAN “reforçaria os temores de Putin, liquidando qualquer possibilidade de construir um modelo mais cooperativo” nas relações econômicas – o que deveria ser, para ele, o desfecho bem sucedido desse período histórico. A tese inquieta e autoconfiante de que Ucrânia seria a peça final no cerco da OTAN às fronteiras da Rússia, alimentada pelo governo Obama com metáforas democráticas e pouca reverência pelo orgulho russo, se revelou desastrada: Putin invadiu a Ucrânia e colocou em prontidão operacional seu arsenal nuclear.
E o Ocidente, que incendiou o coração de um comediante bom, mas inepto para a dimensão da tarefa outorgada pelo voto, agora fará o quê com tudo aquilo? Nada. Sanções econômicas, por mais duras, não derrubam aviões. Tirar a Rússia da copa do mundo não explode tanques. Os objetivos mais modestos de Putin (seu Plano B) estão muito próximo de serem atingidos: depor o governo Zelensky, arrancar um acordo de neutralidade e dar autonomia a Donbass e Donesk. E porque digo que estão próximos? Porque, na prática, já aconteceram. Essa parte é homologatória.
Hoje, o que menos importa é saber o preço que a Rússia haverá de pagar pela ousadia brutal da invasão porque o custo é elevado, mas não é impagável para o segundo maior exportador de petróleo do mundo. 40% do gás europeu sai de lá e qualquer bodegueiro da Bavária sabe quanto custará transportar da Nigéria em navios o que chega em sua porta hoje por meio de dutos. Essa coisa aí se ajeita. O Ocidente, sim, ficou, a longo prazo, com a parcela mais amarga dessa conta.
Digo “parcela mais amarga” porque não pode ser liquidada com riqueza material. Dispara um novo arranjo. A guerra da Ucrânia define o fim de um ciclo de expansão das forças do Ocidente – o chamado pós-Guerra Fria – e inicia outro, em que a cena se abre a outros atores
Gente que erra pouco nos laboratórios de estudos acadêmicos sobre relações internacionais na Europa tem apostado que a estreia da China como protagonista na mediação de conflitos internacionais em breve ainda será muito pranteada em Whashington. Preparem os lenços: os chineses, de milenar tradição nacionalista, agora serão vistos mundo afora com maior frequência. E, quando chegar lá, se haverá de contar essa história com início datado em 2014, quando um Obama era presidente e um republicano já meio fora de moda escrevia artigos como convém a um idoso: com apelos por prudência.
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Ricardo Alcântara é escritor e publicitário