O que faz o Ceará. Por Angela Barros Leal

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Bondinho de Ubajara. Foto: Divulgação

De que era feito o Ceará: do entrançado de memórias, vivências e histórias. De um aglomerado de raças, povos, glórias e dissabores. De festejos entre risos, e de rios de acontecimentos. De cantos, racontos, bem guardadas narrativas. Dos mais perenes sentimentos. De uma esperança vital e uma boa dose de irreverência, essencial à vida. De um desprendimento destemido, intemerato. Da imaginação solta dando alma aos fatos.

De que se fez o Ceará: Das lendas arcaicas sobre os primeiros que aqui aportaram: espanhóis, franceses, holandeses, os portugueses que da terra se apossaram. De nomes como Marajaig, Rostro Hermoso, Schoonenborch convivendo com tupis, tapuias, tremembés e pitaguaris, com a civilização do couro e a criação intensiva do gado.  De nomes que ganharam novo sotaque, um novo toque, novo sentido e enfoque, movidos pelo sonho da prata e pelos devaneios do ouro. De algo desse tesouro parece ter começado a ser feito o Ceará: da força regente de um sol sem tréguas, explodindo nos contrafortes das serras e chapadas, reluzindo, em verdes águas, no movimento do mar.

De sol e de luz foi feito o Ceará. Da claridade dos dias alumiando planícies, pastos e plantações, o amanho da terra, a suada colheita. Da cintilação que banha as mil cores das flores cultivadas e os doces frutos nascidos para viajar. Dos açudes abraçando seus próprios mares, dos rios secos e da raridade das águas, em uma sede jamais satisfeita. Da luminosidade que ofusca os olhos dos jangadeiros e encandeia os peixes enredados nas malhas das redes, para a venda, almoço e jantar. De renda e do bordado no pano esticado entre bastidores, de fios e linhas, da firmeza das mãos e do desenho de um mundo de cores, surgindo sob o vidro de uma garrafa qualquer, com a beleza que se deseja recordar.

De que se sustenta o Ceará: da costura de seus municípios, a partir da semente de vilas, distritos, aldeias e vilarejos originários, obras de loucos, corajosos, visionários. Da determinação e resistência desses primeiros agrupamentos humanos, arranchando-se ao redor das fontes cristalinas de água, reconhecendo ali a chave da subsistência. Do casario em palha, pedra, barro ou madeira, erguido sobre o solo até o toque final das telhas, desconhecendo conforto: alpendre, um quarto, uma rede, mesa e banqueta – o necessário para atender mais um parto, velar mais um morto. Das orações à sombra de uma igreja, do som de um sino no campanário, do orago entronizado em seu altar ao qual se implora pelo milagre de um pasto farto, de poder colher, para todos, tudo o que se plantar.

De que é feita a festa no Ceará: das regiões multiculturais que concentram esses municípios, irmanados em suas questões, unidos em suas manifestações de criatividade e de espírito. Das celebrações próprias de cada região, embandeirando em cores o enquadramento de suas fronteiras, ou ignorando todas elas para gozar a liberdade de festejar o que se queira. Do Bumba-meu-boi e do Boi Bumbá, da Ema, da Nau Catarineta, o troar da maraca e da zabumba encobrindo o toque dos sinos de Natal, o portal de um novo ano a se achegar. Do canto pedinte dos Reis de janeiro, indo de porta em porta com a cantoria na garganta, seguindo a estrela que se levanta indicando a estrebaria, sem ouro, incenso ou mirra nas mãos vazias.

De que se faz a tradição do Ceará: dos bens tombados, dos imóveis que guardam histórias em suas fachadas, nas janelas abertas e portas fechadas, nos trincos e maçanetas, nas frestas e camarinhas, nos porões e postos de vigia, no piso morto de sombrias pegadas.  Das festas louvando São José, patrono das chuvas, das quais tem a chave em seu trono de nuvens, refestelado entre um pé de vento e uma trovoada, envolto no espesso nevoeiro de fé nas graças que serão alcançadas. Dos festejos juninos acendendo fogueiras que ascendem aos céus, atiçam o passo das quadrilhas, avivam adivinhações e instigam simpatias casamenteiras sob bandeirolas de crepom. Das procissões e romarias, das novenas debulhadas em terços de madeira, dos joelhos marcados pelas confissões de tão poucos pecados, da piedosa prestação de contas de seu fardo, de seu fado.

De onde surge a animação no Ceará: da disposição dos que se veem qual ferozes gladiadores, transformando golpes de morte nos passos da congada, ritos de trajes coloridos alumiados por espelhos em estilhaços. Das danças da Banda Cabaçal harmonizando com o soprar dos pífanos, as falsas espadas sem ponta apontando um passado que jamais será tão especial. Do som desigual das rabecas gemendo ao queixo, apertadas ao peito, soando como a voz que teria o enverdecer do mato depois das secas.
Das gargalhadas, das anedotas, gozações, de uma vocação inata por piadas, já que é preciso rir para flutuar acima e além do vai-e-vem dos caprichos da terra, da natureza áspera do chão.

De onde vem a cultura do Ceará: Da recolha desses elementos, da colagem desses fatos, da montagem caprichosa dos componentes encontrados à mão, da decidida coragem de empregar a imaginação, de não desistir da própria alma e de guardar no corpo, mãos e braços, salvando na memória e no regaço o que se foi, o que hoje se é, o que se fez e o que certamente fará. Tudo isso é Ceará.

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