Pesquisar
Pesquisar
Close this search box.

Cerveja e caracóis. Por Angela Barros Leal

COMPARTILHE A NOTÍCIA

Meu hobby é jardinagem – escuto da doce senhora sentada ao meu lado, em um festivo café da manhã em domicílio alheio. Emito o som das congratulações esperadas e imagino a senhora com um chapéu de palha protegendo a cabeça, ajoelhada ao chão, prestando homenagem às plantas e flores brotadas nos nossos trópicos, em torno de alguma antiga casa de campo.

Refaço a imagem em pouco tempo. A doce senhora me diz ter recém completado 90 anos, o que me conduz a apagar a imagem dos joelhos como impossível, ainda mais depois que ela conta do problema no fêmur. Deve ser, portanto, uma adepta da jardinagem em vasos dispostos em varandas, a uma altura adequada à idade e à saúde dela.

Nessas conversas entre desconhecidos, cada um exercendo ao máximo o cumprimento das regras implícitas do contrato social que assinamos ao nascer, não se pode avançar demasiado sem correr riscos. Faço perguntas leves, sondando aqui e ali como um médico em seu trabalho de anamnese.

Como pouco – ela diz, tentando explicar o segredo da longevidade – e tenho objetivos. Um deles é solucionar o problema com os caracóis, uma peste para as plantas. Os moluscos gastrópodes que se arrastam sobre a terra, protegidos por delicada concha, estavam devorando as folhas de seu jardim suspenso, sem só e sem piedade.

Outro dia matei 78 deles de uma vez – completa, com um sorrisinho malicioso, digno da fictícia Miss Marple, personagem de Agatha Christie. Que inclusive era grande admiradora da jardinagem.

Ela volta a falar do trivial: a filha, os filhos, a neta, e eu escuto paciente, aguardando entre goles de café os detalhes da hecatombe dos caracóis. Mas ela decidira deixar de lado o assunto letal para se dedicar às minúcias de um acidente doméstico, ilustrado pelo uso da nomenclatura anatômica dos encaixes ósseos traumatizados e dos procedimentos físicos necessários para a reabilitação.

Não havia razão para nenhum espanto da minha parte, exceto o vergonhoso preconceito de imaginar que uma nonagenária fosse incapaz de saltar tão veloz de um tema a outro, muito menos de ter em mente os termos técnicos que empregava com tamanha familiaridade.

Logo entendi os comos e porquês: ela era médica, havia sido professora universitária, e mantivera a flexibilidade mental no decorrer do tempo.

Não se fazem mais nonagenárias como antigamente – foi meu pálido comentário voltado a mim mesma, ainda aguardando o relato sobre a execução dos caracóis, não nos vasos de varanda, como eu pensara, mas em jardim, sim, um jardim de verdade, florescendo no entorno de uma casa de verdade, em meio aos edifícios da Aldeota.

Da minha parte, sabia que o sal se faz mortífero quando atirado no caminho dos caramujos, lesmas e caracóis, principalmente quando cai sobre as esbranquiçadas lesmas, despidas da concha protetora que defende, ainda que por um breve tempo, seus outros dois aparentados na árvore genealógica dos moluscos.

Tinha conhecimento também do uso do onipresente bicarbonato de sódio, ou da bem mais dispendiosa canela, especiaria de luxo usadas por alguns para um fim tão inglório. Mas nada disso. A doce senhora utilizara cerveja para dar fim aos exterminadores de suas plantas.

Cerveja, sim, embebida em um pedaço verde de chuchu, ou em um retalho largo de pano colocados diretamente sobre a terra ou encobrindo as plantas, armadilhas às quais os atacantes se agarravam para sugar o líquido com seus dentículos, ou com suas devoradoras aberturas bucais, aquecendo-se inebriados no abraço fatídico do álcool.

Ou pelo menos foi assim que imaginei. Os pequenos gastrópodes pressentiam o cheiro fermentado da cevada, arrastavam-se até a fonte, como bebedores sedentos, e grudavam-se no pedaço de legume, ou na maciez úmida do tecido, cegos e surdos ao momento em que seriam recolhidos, às dezenas ou centenas, destinados ao fogo ou ao esmagamento.

Não devia ser uma morte de todo má, comentamos, a doce senhora e eu, ela por formação mais familiarizada com a vida e com a morte. E mais não me foi dado a saber, pois era hora de cantar os parabéns à aniversariante do dia, o que fiz a plenos pulmões. De uma conversa entrecortada com uma desconhecida, eu aprendera sobre a importância de comer pouco, a relação entre a bebida e a morte suave, e principalmente a não ter tanto medo de chegar aos 90. A serem comemorados com ou sem cerveja.

 

COMPARTILHE A NOTÍCIA

PUBLICIDADE

Confira Também

Fortaleza: Assim como Quaest, Datafolha capta movimento antecipado pela Focus/AtlasIntel

Animado por pesquisas, Lula grava pra Evandro e agenda ato em Fortaleza

Nova Quaest mostra que Focus/AtlasIntel antecipa a dinâmica do voto em Fortaleza

A nervosa dança das pesquisas eleitorais em Fortaleza

Em educação, Brasil investe menos de 1/3 da média da OCDE

A preciosa leitura de Andrei Roman, CEO da AtlasIntel, acerca da disputa de Fortaleza

É hoje: disputa de Fortaleza em estado de expectativa com nova pesquisa Focus Poder + AtlasIntel

Acaba a farra ESG enquanto a crise climática se agrava

A esquerda e o jornalismo estão tontos e não entendem fenômenos como Pablo Marçal

Focus Poder inova no Brasil com formato ‘Smart Brevity’ de notícias ágeis e diretas

Indústria dos “cortes” em vídeo: Lucro fácil, desinformação e realidade eleitoral paralela

Fortaleza: Assim como Datafolha, pesquisa Ideia diz que quase nada mudou em um mês

MAIS LIDAS DO DIA

Pablo Marçal. Foto: Divulgação/Redes Sociais

Sem citar nomes, Marçal diz que no debate estavam presentes 2 homens que são agressores

Elmano envia PL que assegura gratuidade no transporte intermunicipal e metroviário no dia das eleições

Campanha eleitoral de 2024 registra aumento de mais de 300% em denúncias de assédio eleitoral no primeiro turno

Apoio de Lula não impulsiona Boulos, e Nunes abre vantagem entre eleitores mais pobres, diz Datafolha

Brasil precisará formar 3 mil técnicos por ano para expandir produção de hidrogênio verde, aponta estudo

Impacto das apostas esportivas no Brasil levanta preocupações sobre endividamento e economia

Caucaia recebe o reforço de 200 novos soldados da Polícia Militar

Bolsonaro condena Marçal por comparar episódio de cadeirada com facada: ‘Lamentável’

STF retoma debate sobre ampliação do foro privilegiado para crimes cometidos no cargo