Os roedores dialéticos ou os heróis da colonização cultural do mundo; Por Paulo Elpídio

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  “A conquista do poder cultural é prévia a do poder político, e isto se consegue mediante a ação concertada dos intelectuais chamados orgânicos infiltrados em todos os meios de comunicação, expressão e universitários”, Antonio Gramsci

A próxima guerra mundial já começou e os sucessos alcançados desfiguraram a divisão do mundo encenada em Yalta. Poucos perceberam as transformações ocorridas e, confundidos com as próprias ilações, continuam a enxergar as conquistas militares como se fossem estratégias modelares de guerra.  Os ímpetos guerreiros perderam, entretanto, a heroicidade romântica das batalhas de outrora. As trincheiras, esvaziaram-se, de tropas estacionárias, as posições de combate ganharam mobilidade, técnica e tecnologias. Os objetivos da conquista perduram, no entanto, os mesmos, nascem das razões da fé, pelo confronto de  utopias distópicas e das ideologias reveladas, e do desafio da ocupação do espaço vital. Foi assim, desde que o homem transformou-se  em cruzado e fez-se arma de guerra à sombra do poderio dos Estados emergentes.  

Já não se fazem guerras como antigamente. Tudo, não passava, afinal, de obra de amadores. Delas, guardamos conosco a imagem projetada nas telas do cinema, na visão grandiosa e apocalíptica de Cecil B. de Mille, as cenas trágicas da invasão da Normandia, a queda de Stalingrado ou a chuva das flechas enfrentadas por Leônidas, nas Termópilas.

Novas estratégias mostram-se prontas e ameaçam de obsolescência as antigas máquinas de guerra. A ação destruidora dos tanques, o fogo nascido dos mares, a morte anunciada dos ares, o holocausto, os “gulags” e os campos de limpeza étnica e ideológica parecem, hoje, ensaios acanhados em face da coerção legitimada pelas novas utopias anunciadas.

Tais progressos ocorreram graças  a soluções caseiras, construídas na universidade, encorajadas pela mídia e celebradas pela propaganda. Fragmentos de ideias cerzidas com pontos bem atados espalharam-se, e ganharam sentido e perspectiva no imaginário dos desconstrutores da realidade.  Os chefes militares e os ideólogos inocularam a dúvida nos espíritos, em busca de certezas e esperanças e distribuíram diligentemente sonhos e quimeras como alimento da vontade.

As ideias de liberdade, a exemplo das teorias da libertação, nascem dos bons propósitos, das reflexões maduras dos mestres e dos arroubos dos jovens. O percurso que seguem, a receita de como alcançar os seus generosos propósitos as diferenciam e emprestam-lhes a cor própria das suas ambições e da  intolerância  sagrada dos salvadores.

Primeiro, sopraram as utopias carregadas de revelações. O leve tom de ingenuidade lhes emprestou cordura e deu azo à solicitude pelos ganhos da catequese e do convencimento. Dos anunciadores das novas verdades vieram os seus intérpretes. A teoria vestiu-se com o manto da práxis, as ideias transformaram-se em ação, estas impuseram estratégias e, assim armados, os cavaleiros partiram em busca da descoberta do homem novo.

Os embates decisivos ocorrem, agora, fora dos campos minados da “terra de ninguém”, ignoram mísseis e as fortificações fixas. O objetivo da ação guerreira tem por meta a conquista pelo aniquilamento total. Nesse ínterim, de pouco menos de dois séculos, a humanidade deu um salto que sequer teria ocorrido ao Criador na sua diligente artesania da vida. Foi então que se deu o pulo do analógico para a era digital essencial.

A bula de operações dessa guerra moderna é bem antiga; foi escrita por Lenin e reescrita pelos administradores  do seu legado. Trótski e a dissidência menchevique, Mao e o seu bisturi cultural, Gramsci e a sua guerra cultural de ocupação intelectual e colonização ideológica.

Enquanto os estadistas negociam o trivial, nas conferências “au sommet”,  os “micis” ideológicos escrevem, publicam, compõem,  cantam e produzem ouvintes  e leitores. E são celebrados pela mídia produtora de encantamentos, de mitos e heróis, vilões e santos. Os “reformuladores” constroem a teoria e destroem argumentos com as armas da dialética do poder. Contraditam a realidade com falsos argumentos, unem-se aos “companheiros de estrada” e dão-lhes a impressão que são aliados na conquista de uma sociedade do amor e da felicidade.

Fragilizam as instituições, desacreditam as leis e os governos, apropriam-se da mídia através da turminha infiltrada com aquele topetezinho acadêmico. De tudo sabem um pouco, e pouco, muito pouco, de tudo. Emolduram a vontade e os tropos ideológicos e dão-lhes a notoriedade da teoria. Apontam e denunciam a discriminação social, política, econômica e racial, mas tropeçam jovialmente nos preconceitos ideológicos — e exibem o ar indulgente dos iluminados, ungidos pela revelação.  Afrouxam os laços da solidariedade familiar. Calam diante dos contraditórios tolerados — e partem em guerra, “tambour battant”,  contra os agravos das certezas alheias.

O que dizer deste destemido herói vocal urbano,  deslumbramento dos  jovens empanturrados de decibéis — o “mici” revolucionário, pensador social e político, encanto da juventude de Ipanema e da laje de “Alemão”? O novo personagem é obra da ficção e do imaginário político, rapsodo moderno, construído pelo imaginário coletivo e pela modelagem da mídia

A mídia tornou-se  o camarim social iluminado nos quais se produzem mártires e personagens famosos. E ideias, consensos e dissensos, fatos e contrafatos, notícias e “fake News”, interpretações e prejulgamentos — e o que parece ser a matéria prima dessa poderosa máquina de produzir realidade, a tradução dos fatos e a sua adaptação ao entendimento comum.

A estratégia desarmada das  ideologias serve para instilar a dúvida sobre as questões de gênero, as instituições, os poderes políticos do Estado, as lideranças políticas, as leis e a ordem constitucional, e os agentes públicos. A tolerância com as falanges público-privadas e os réus e indiciados por crimes contra o erário reforçam o grau de solidariedade projetado sobre uma aliança discreta, porém convincente.  Da igreja e da escola o ativismo serve-se do púlpito e das mentes despreparadas. Nessa peleja, vale tudo: o anticomunismo profissional, o antifascismo inquisitorial, os argumentos da fé, o anátema lançado como a meritocracia, a ecologia, a invocação dos direitos humanos, a defesa do meio-ambiente, a “democratização” da universidade, a “boa” intolerância e a indulgência com os condenados pela justiça.

Guerreiros e convincentes, fazem do apostolado religioso e dos exercícios do conhecimento braços laboriosos de uma nova realidade. As armas eleitas? A desconstrução das dissensões e dos contrapontos incômodos, a redução lógica do discurso do interlocutor, a desmoralização do adversário, sem que se deem ao esforço de contestação do que dizem e afirmam.

São os roedores epistemológicos que raspam por dentro os dotes de inteligência e o bom senso que, julgávamos, fossem atributos do homem, da mulher e dos componentes heterodoxos do meio círculo da neutralidade ecumênica.

Com tantos e tão amestrados roedores, restarão dessa sociedade em extinção os néscios, os iludidos e os oportunistas, exército inflexível que colonizará o mundo.

Restará desvendar o mistério essência que as ideologias não resolveram: será a história que produz a memória dos fatos ou a memória dos fatos que produz a história?

E para encerrar, uma nesga de reflexão de Garmsci: “O velho mundo está morrendo. O novo tarda a aparecer. E nessa meia luz, surgem os monstros”.

Preparemo-nos para o encontro com esses Adamastores. Eles estão por aí e apropriam-se dos latifúndios devolutos da nossa insensatez.

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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