
Invejo, invejo profundamente, assumida e desbragadamente, a mente de quem dispõe de boa memória. E me pergunto quase ofendida, doses de ira e azedume similares ao que Iago fazia despejar nos ouvidos de Otelo, qual conjunção de fatores, que aglutinação de células, que ajuntamento de matéria cinzenta concedeu a essas pessoas a capacidade de guardar, nas intrincadas espirais do cérebro, nomes, datas, fatos acontecidos em tempos passados (e até mesmo do presente mais próximo), em suas detalhadas circunstâncias. Tenho parentes próximos dotados dessa qualidade. Tenho amigas assim. Encontro antigas colegas que conversam comigo como se nem um único dia houvesse se passado desde que corríamos juntas em torno do laguinho de peixes dourados do colégio. Ou talvez fosse uma piscininha de tartarugas, não lembro.
Sei que eu estudava para as provas e gravava muito bem os conteúdos. Após depositar a folha de papel nas mãos esperançosas da mestra, o que eu aprendera esvaía-se como o sangue da galinha decepada que nos serviria de refeição. Lembro, sim, das galinhas sacrificadas, e de uma citação de Campos de Carvalho na sua desvairada narrativa O púcaro búlgaro: “Tenho uma memória fabulosa para as coisas mais fabulosas.” Em sendo assim, lembro de coisas fabulosas do passado. Lembro de ter avistado uma chuva de estrelas (ou meteoros?), na primeira noite em que visitei o apartamento no qual resido hoje, o que me pareceu um excelente augúrio. Lembro dos seis meses que adolesci vestindo nada além de preto e branco, código para o luto quebrado, por se tratar da morte de um avô.
Fosse pai ou mãe, marido ou mulher, o luto era fechado: roupa preta da cabeça aos pés, no vestuário feminino e, para os homens, a faixa escura, de crepe, chamada fumo, presa à lapela ou na manga do paletó, distintivo masculino reverenciando a perda. Desconfio que ainda exista quem lembre, ou mesmo preserve, tais costumes. Como a repetição igualmente enraíza a memória, lembro das breves orações rezadas antes do sono: com Deus me deito, com Deus me levanto, guardai-me Senhor com Seu divino manto; meu Anjo da Guarda, meu bom protetor, guardai minha alma para nosso Senhor. Amarcord, diria Fellini, disso eu me recordo.
Graças à repetição gravei os nomes completos de algumas colegas, recitados na chamada diária em sala de aula, e que não quero listar aqui porque elas com certeza também não esqueceram. Marta, presente. Marilena, presente. Lígia, presente. Lúcia – essa última não apenas presente, mas aproximando-se de mim com uma tesoura na mão, a um tempo em que não havia sido criada a palavra bullying, para decepar, rente à minha cabeça, uma substanciosa mecha do meu cabelo, interessada em fazer uma trança para uso próprio. Ação que não lembro ter autorizado, e da qual até hoje não esquecemos de rir quando nos encontramos, embora com indisfarçável constrangimento de ambas as partes.
Memória jamais foi meu forte. O que passou, passou – poderia ser meu lema, o epitáfio de uma vida a ser vivida no tempo verbal do presente contínuo. Existem vantagens nessa espécie de dislexia temporal, não posso deixar de reconhecer. Ódios e rancores não me aferventam a alma. Sei que alguém me causou desagrado, por alguma razão. Mas, descartadas as folhinhas do calendário, descartado o próprio calendário, não recordo com precisão o que se teria dado. E agora lembrei porque estou a escrever isso. Uma amiga e xará das mais queridas me demanda alguma fala sobre certa escritora (ou professora?), nascida em Beberibe (Aquiraz?), para o programa de televisão que ela produz. Escuso-me com razão: de tudo que eu sabia sobre Ana Facó só uma única frase persistiu incólume na lembrança.
Guardei solitária citação por haver com ela estabelecido identificação imediata. Evidente que não lembro mais por onde andam as anotações que tomei à época, porém não esqueci que a professora/escritora avaliava sua memória, com indisfarçável mágoa, como “uma rede de malhas largas, aberta sobre o poço do esquecimento.” Por que então você não escreve sobre esse assunto? – provocou ao telefone minha xará, talvez descrente ante à recusa. E eu, ciente das minhas falhas, aproveitei para sentar e escrever, sem perda de tempo, a presente crônica, antes que o tema me fugisse da memória.
